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11 de abril de 2021

Nascer e morrer, os números contam

Recentemente publiquei alguns gráficos no Instagram falando do número de residentes no ABC que dão à luz: muitas delas vão para outros municípios na hora de ter o bebê, e sabemos por experiência que isso é verdade. Chamou a atenção na série de gráficos como o número de nascimentos vem diminuindo ao longo dos anos, e provocada pela mana Deborah, prometi que estudaria a respeito para entender melhor essa tendência.

Mal tive tempo de começar, deparei-me com o alerta do Prof. Miguel Nicolelis, de que em abril deste ano o número de óbitos ultrapassaria o número de nascimentos no Brasil, em um resultado inédito na nossa história. Saiu, depois, uma matéria no El País falando sobre isso, e de forma não surpreendente, um município da nossa região é citado já na capa da matéria.



De repente eu me peguei tentando desacreditar nessa informação. Inventei várias desculpas mentais para esse disparate, puxa, talvez o número de nascimentos já estivesse se reduzindo tanto que isso já fosse acontecer mesmo. Precisa ver direito esse dado aí, pensei. Bem, corri para olhar as bases de dados públicas que geralmente consulto, do Ministério da Saúde, para verificar a notícia eu mesma. Ocorre que essas bases demoram muito a ser atualizadas, e obviamente isso não é à toa. Então segui a pista da matéria do El País, e abri o site dos cartórios de registro civil.

A partir desse site é possível consultar números do movimento do registro civil: o que os cartórios registraram de nascimentos, casamentos e óbitos. Na emergência da pandemia, criaram ainda uma consulta específica para a Covid-19. A base das informações são as declarações de nascido vivo (preenchida pelo hospital/maternidade ou pela pessoa que prestou assistência ao parto), de óbitos (a famigerada DO, também fornecida por um estabelecimento ou profissional de saúde) e de casamentos. Não há referência, no site, sobre quando foi a última atualização dos dados (ou tem e eu não vi). De toda forma, é uma possibilidade de consulta, ainda que os dados sejam preliminares. É importante ter isso em mente. Não sei como os dados do registro civil são tratados, mas na área da saúde sabe-se que muitas vezes é preciso retificar algumas informações, passados meses ou mesmo anos da ocorrência. Por exemplo, as mortes de mulheres em idade reprodutiva precisam ser investigadas, para descartar que tenham sido relacionadas à gestação, ao parto ou ao aborto. Isso serve para identificarmos com mais precisão as mortes maternas e, assim, criarmos políticas para seu enfrentamento (o que não necessariamente tem acontecido, diga-se).

Mas voltando aos dados de nascimentos e óbitos... Como a plataforma do registro civil é muito ruim para tabular dados, peguei dela as informações de 2020 e 2021, que não estão disponíveis em outras fontes. Tirei dados de anos anteriores da Fundação Seade, que têm como base também as informações do registro civil, mas que passam por uma análise de consistência antes de irem ao ar. Os dados mais recentes dessa base são de 2019 e mostram que de fato desde 2009 vemos uma pequena tendência de redução de nascimentos. Mas algo muito discreto.

Fonte: Fundação Seade.

E as mortes? Olhando para os números absolutos, elas vêm aumentando desde 2009 – mas não me parece um acréscimo alarmante, pelo menos não à primeira vista. No gráfico abaixo, usei a mesma escala do gráfico de nascimentos, de forma que é possível comparar a magnitude dos números, ou seja, o volume de nascimentos e óbitos entre os anos de 2009 e 2019 – um intervalo de dez anos antes do início da pandemia, portanto.


Fonte: Fundação Seade.


Ok, até aqui, nada muito surpreendente, certo? Número de nascimentos em patamar ainda muito superior ao de mortes. O que significa que a população da região foi crescendo continuamente ao longo desse período, e possivelmente com mais pessoas chegando às idades mais avançadas. (Parêntese. Não faz muito tempo que eu descobri que envelhecer é um privilégio: pessoas pretas e pardas vivem muito menos do que as brancas. E esse é um assunto tão sério que merece ser tratado de maneira bastante cuidadosa, futuramente.)

Mas se até 2019 não havia nada de muito surpreendente entre nascimentos e óbitos, o que aconteceu em 2020? 


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.

Como se nota, há uma variação no número de nascimentos ao longo do ano, o que é esperado. Isso aconteceu também em anos anteriores – somei os nascimentos registrados na Região do ABC para o gráfico não ficar muito confuso, mas na imagem a seguir dá para perceber a variação ao longo do ano, e também dá para notar que em 2020 houve menos nascimentos em comparação com os dois anos anteriores. Mas algo muito discrepante? Não tanto assim.

Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil; Fundação Seade.


E os óbitos? No início da pandemia, o que mais ouvimos foi da importância de frear a disseminação do vírus da Covid-19 para "achatar a curva" da doença, numa referência justamente ao gráfico do número de casos. Sabíamos que muita gente que ficasse doente iria precisar de hospital e que nosso sistema de saúde não daria conta de atender todo mundo se não evitássemos que a doença se espalhasse. Hoje já sabemos muito mais sobre o vírus e a doença que ele causa, mas é fato que não só o número de hospitalizações cresceu, como também o número de mortes. Sem separar os óbitos ligados à Covid, colocando tudo no mesmo balaio, é possível ver que o número total de pessoas que morreram no ano passado aumentou muito em junho – nosso pico de mortes, até então.

Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.


Tenho certeza de que muitas pessoas vão dizer que isso é também uma variação ao longo do ano, como vemos entre os nascimentos, e que portanto não há o que se comentar a respeito. Pois então, fiz com os óbitos o mesmo que fiz para os nascimentos, somei o número de mortes da região por mês, de 2018 a 2020.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil; Fundação Seade.


A linha cor de laranja, mais clara, mostra o número de mortes no ABC paulista em 2020: vejam como o pico do meio do ano é muito mais acentuado do que nos anos anteriores. A linha até voltou a se aproximar à dos anos anteriores, mas terminou 2020 em ascensão. Isso significa que em 2020 tivemos muito mais mortes na região do que costumávamos observar. E o que veio depois – ou seja, neste ano de 2021 – é realmente assustador. Fiz um gráfico juntando nascimentos e óbitos da região, de janeiro do ano passado até março deste ano.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.


A linha azul é dos nascimentos. A cor de laranja, dos óbitos. Não bastasse o pico de junho de 2020, vemos aí um Everest em março deste ano, ultrapassando em muito o pico do ano passado e o número de nascimentos do mesmo mês. Caso não tenha ficado suficientemente visível, vou colocar outro gráfico, que traz os mesmos dados, mas expostos de uma maneira diferente, separando 2020 de 2021. Janeiro, fevereiro e março estão à esquerda.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.


O número de óbitos inclui aquelas pessoas que perderam a vida pela Covid-19, mas não só. Há também aquelas que ficaram doentes no ano passado, mas nunca se recuperaram plenamente, e morreram agora por problemas neurológicos ou do coração, por exemplo, com sequelas da Covid-19. Há ainda as mortes de pessoas com problemas diversos, que não foram atendidas no tempo adequado, por falta de vagas no hospital ou porque ficaram com medo de procurar um serviço de saúde. Tem também as mortes "que sempre aconteceram", por outras causas variadas, entre elas a de mulheres que não receberam cuidado adequado na gestação, no parto e no aborto, por exemplo.

Estou dizendo que pela primeira vez na história recente da nossa região registramos mais mortes do que nascimentos. Isso não aconteceu porque o número de nascimentos caiu, ou seja, porque as pessoas estão decidindo ter menos filhos, não! O número de nascidos permanece relativamente estável. Os estudiosos do tema (que são chamados de demógrafos) dizem que o número de mortes só viria a ultrapassar o de nascimentos no Brasil em 2047 – em uma transição lenta e gradual, como aconteceu na maior parte dos países ricos.

Quais as consequências para a nossa sociedade? Se continuarmos tendo muito mais mortes do que nascimentos, a nossa população (o número de pessoas que moram na região) vai diminuir. E de um jeito brusco, inesperado, com muita tristeza, pelo excesso de mortes, e não pela decisão das pessoas de terem menos filhos. De imediato, já podemos sentir esse efeito, no luto das famílias, que perdem uma, duas, três pessoas próximas em um intervalo de tempo muito curto. Como essas famílias se reestruturam? Emocionalmente, é devastador. E financeiramente? Embora mais homens estejam morrendo de Covid-19, as mulheres sofrem o impacto dessa pandemia de maneira devastadora, porque são elas que cuidam de todas e todos, são também a maioria na linha de frente, como profissionais de saúde. A Agência Pública publicou uma reportagem muito competente sobre famílias que perderam sua mãe na pandemia.

Mas para além dos reflexos nas vidas individuais de quem fica, precisamos pensar também nos significados dessas mortes em excesso para a nossa sociedade. Em uma perspectiva coletiva, de uma hora para outra vimos uma geração de pessoas mais velhas ser dizimada. Aos poucos, o Brasil vinha conquistando uma maior expectativa de vida, com melhores condições de sobrevivência para a população, mas isso se perdeu em questão de meses, e ao fim de 2020 já havia quem apontasse a redução na expectativa de vida em dois anos. Isso é muito significativo, especialmente se pensarmos que para muitos grupos o impacto deve ter sido ainda maior, por exemplo, para pretas e pardas e para povos indígenas. Em um contexto de crise como o que já vivíamos, isso é muito relevante, visto que muitas famílias tinham como única renda a pensão ou aposentadoria da pessoa idosa com quem viviam. Era a vó ou o vô que tinha um dinheirinho todo mês para garantir a feira. E agora, ela ou ele, ou os dois, se foram. Para um governo federal que não se importa com as pessoas que estão padecendo, isso é uma ótima notícia, pois significa a "economia" de algum dinheiro no pagamento desses direitos. Isso é de uma perversidade terrível, e tem até nome, chama-se necropolítica, quando o Estado (o governo da nação) efetivamente escolhe quem vai morrer, por meio de suas políticas ou pela omissão, por permanecer sem qualquer ação quando deveria tomar alguma atitude.

Se do ponto de vista das finanças familiares essas perdas são já sentidas, na perspectiva cultural e histórica talvez demoremos um pouco mais para compreendê-las. Embora não tenhamos o costume de valorizar os saberes das pessoas mais velhas, são elas a carregar nossas raízes, nossas origens, as histórias de nossas vidas antes mesmo que nascêssemos. As memórias, as práticas, as lutas, e mesmo os carinhos e afetos se foram, de maneira irrecuperável.

Ainda falando da necropolítica, mesmo com as festas das elites ricas sendo noticiadas na TV, sabemos que quem mais sofre com a Covid-19 são as pessoas que precisam sair para trabalhar todos os dias. Quem fica vivo tem de se virar no meio da pandemia, sem auxílio governamental, sem políticas que permitam o trabalho seguro, com uma perspectiva muito longínqua de tomar vacina.  São essas pessoas que se expõem no transporte público vergonhoso (sempre lotado, nunca alvo de melhorias, nem mesmo na pandemia), no trabalho sem carteira assinada ou com direitos precariamente garantidos, sem equipamentos de proteção, sem adequação do ambiente de trabalho e sem orientações adequadas sobre como se proteger, com moradias superlotadas, sem infraestrutura e sem possibilidade de isolamento de familiares com quem moram... Nesses contextos, sobreviver é mesmo um ato de resistência.

Agora, falando de um aspecto mais biológico, vemos que cada vez pessoas mais jovens estão se infectando e morrendo de Covid-19. Sobre isso, é importante dizer que o vírus que causa a doença não se manteve o mesmo desde o início da pandemia, ao contrário, como um bichinho muito esperto que é, tem se modificado para infectar cada vez mais pessoas e de maneira mais avassaladora. E nós estamos contribuindo para isso, pois quanto mais o vírus circula, mais propenso ele fica a se modificar (sofrer mutações). Isso quer dizer que depois de acabar com a memória de muitas famílias, e de ameaçar a subsistência de outras tantas, matando os idosos, agora estamos vendo a pandemia ameaçar a força de trabalho ativa, aquelas pessoas que estão no batente todos os dias, que saem para ganhar o pão. Se as famílias perderam avós e avôs no ano passado, agora estão perdendo mães e pais. 

Depois de olhar esses gráficos, eu não sinto outra coisa, a não ser horror. O horror de pensar que amanhã, dia 12 de abtil, o Estado de São Paulo relaxa suas medidas já nada austeras no combate à pandemia. Com mais pessoas circulando pelas cidades, inclusive estudantes, o que podemos esperar para os próximos meses? Será que prefeitos e secretários do ABC paulista usarão o conhecimento científico? Será que efetivamente tomarão atitudes eficazes para gerir a pandemia? Ou será que continuarão de olhos fechados a esses dados? E que ninguém se iluda com os números absolutos. Nenhuma cidade do ABC paulista se safou do excesso de mortes em março deste ano. Comparando o número de mortes de março deste ano com o de março do ano passado, vejam só quem teve o maior aumento porcentual.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.

A cidade que se gaba de ter o maior IDH, de ser um ótimo lugar para viver, de estar vacinando muita gente... São Caetano do Sul, cidade de população e território reduzidos, mas por onde muito dinheiro circula, foi a que teve o maior aumento proporcional de óbitos em março deste ano na comparação com março do ano passado, quando a pandemia ainda não havia se instalado plenamente por aqui. Foram quase três vezes mais mortes. Logo haverá alguém a reclamar, dizendo que o município é pequeno e que, portanto, o número absoluto de mortes é reduzido, contexto em que é fácil ter um aumento de 300%, por exemplo, quando se passa de 2 para 6 óbitos. Argumento semelhante poderia ser usado por Rio Grande da Serra, que em 2020 teve uma média mensal de 19,9 óbitos e, em março de 2021, registrou 34 mortes. Já em São Caetano a média mensal de mortes no ano passado foi de 146,9, com 132 óbitos em março de 2020, e 390 falecimentos em março de 2021. Como se nota, os números têm maior magnitude e, o mais relevante nessa história, o município de São Caetano tem muitas condições de atuar de maneira efetiva contra a Covid-19, se houver vontade política.  

O gráfico a seguir é uma repetição, só com um jeito diferente de mostrar os dados. Uma maneira de dizer vários palavrões ao mesmo tempo, um jeito de repetir, precisamos ouvir o que a ciência diz a respeito de como controlar a pandemia. Do jeito que vai, nós faremos parte dessas estatísticas nos próximos meses. Alguém duvida?


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.










15 de novembro de 2020

Violência obstétrica: mal do nosso tempo?

 Na nossa sociedade, as queixas das mulheres muitas vezes são desvalorizadas, principalmente quando se relacionam com seu corpo e sua sexualidade. O que as mulheres pensam e sentem quando têm relações sexuais, quando ficam grávidas, quando estão parindo e quando cuidam de suas crias – ninguém parece se preocupar com isso. Então, quando uma mulher se sente meio esquisita depois de ter seu bebê, com uma sensação de ter sido abusada, há sempre uma multidão de pessoas para dizer que ela deveria se sentir feliz, pois afinal está viva, segurando seu recém-nascido. Mas quando as mulheres rompem com esse silêncio, e conseguem narrar suas experiências, muitas vezes descobrimos histórias de sofrimento, solidão, medo e dor, alinhavadas por ameaças, silenciamentos, chantagens, humilhações.  Hoje, aprendemos a nomear essas situações como "violência obstétrica", seguindo o exemplo das companheiras venezuelanas. Mas se o termo é relativamente novo, as situações de desrespeito, abuso e maus-tratos acontecem nas maternidades há muito tempo! Na década de 1950, por exemplo, uma revista estadunidense para donas de casa recebeu uma enxurrada de cartas falando sobre a situação degradante a que as mulheres eram submetidas nos hospitais. Na época, isso foi chamado de “crueldade”. No Brasil, nos anos 2000, muitos estudos direcionaram o olhar da academia para esse problema, chamando a atenção para a violência contra a mulher nos serviços de saúde (D’OLIVEIRA; DINIZ; SCHRAIBER, 2002); para a desqualificação e infantilização das parturientes, com desrespeito aos seus direitos e violência simbólica (TORNQUIST, 2003); para a banalização da violência institucional, com a deterioração da relação profissional-paciente (HOTIMSKY, 2007) e para a violência institucional em maternidades, de modo amplo (AGUIAR; D’OLIVEIRA, 2011). Esses estudos não mencionam o termo “violência obstétrica”, mas é disso que falam! A violência obstétrica não é uma invenção desta década, nem deste século! Ao contrário, já faz muito tempo que as mulheres denunciam essa forma de violência de gênero, mesmo sem usar esses termos. 



13 de julho de 2020

Quando a ética não faz parte do negócio: a pediatria e a Nestlé

Indústria de alimentos mantém sua estratégia de conquistar corações e mentes (e bolsos) de profissionais de saúde e famílias


Em plena pandemia de Covid-19, em meio a decisões governamentais pouquíssimo ou nada baseadas na ciência, não é de surpreender a notícia de que a Nestlé e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) se uniram para mais uma ação conjunta, conforme noticiado no site da própria SBP: "SBP e Nestlé lançam programa para capacitar residentes de pediatria em temas de nutrição infantil". Com o disfarce de incentivo à formação acadêmica e reforço na qualidade da atuação de futuros profissionais, essa parceria entre indústria e associação médica nada tem de inocente e benéfica para a sociedade. 

E o que há de mal em entregar para a indústria a formação de milhares de profissionais de saúde? Nesse caso específico, o Programa Jovens Pediatras (J.Pedia), "um curso digital de capacitação em nutrição", segundo o site da SBP, os residentes serão formados por quem tem (fortes) interesses econômicos envolvidos no que acontece dentro dos estabelecimentos de saúde, seja consultório, seja maternidade, seja posto de saúde. Estamos falando de médicos formados, futuros pediatras, que entre outras coisas darão orientações e prescrições para cuidadoras e cuidadores de crianças das mais diversas idades, desde o nascimento. Como se pode imaginar, a prescrição de fórmulas (leite em pó, sendo bem clara) será ainda mais banalizada, com um sem-número de indicações e supostas vantagens. Aconselhamento sobre aleitamento materno? Esqueça. Se hoje são raros os pediatras que realmente conseguem auxiliar uma pessoa com dificuldades em amamentar, daqui a alguns anos esses profissionais serão como cabeça de bacalhau. 

19 de julho de 2016

Cesariana: direito de quem?

Resolução do CFM e projeto de lei desviam atenção para o tempo de gestação e ignoram evidências científicas e direitos da mulher


Faz quase um mês, saiu no Diário Oficial uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) segundo a qual “é ético o médico atender à vontade da gestante de realizar parto cesariano”. Por propor que a cirurgia seja realizada apenas após a 39ª semana de gestação, de início a resolução foi festejada por algumas mulheres, que enxergaram na norma uma forma de proteção ao feto e aos direitos da mulher. A leitura descompromissada e desatenta da resolução pode levar a tal interpretação, contudo, algumas respirações a mais permitem oxigenar a discussão.


Quem determina com que idade gestacional o bebê está pronto para nascer, senão o próprio bebê?


O que diz o CFM
De maneira geral, a resolução do CFM diz que a mulher tem o direito de optar pela cesariana, que a decisão deve ser registrada em um termo de consentimento, que a cesariana só deve ser realizada a partir da 39ª semana de gestação e que se o médico não concordar com a cesariana deverá encaminhar a mulher para que outro profissional a atenda. Tomados isoladamente, os quatro artigos que compõem a resolução do CFM podem parecer benéficos, por estabelecerem a idade gestacional mínima para que se realize a cesariana e ao mesmo tempo garantirem o direito de escolha da mulher.

15 de fevereiro de 2015

A dureza da verdade

Estava em busca de uma imagem para ofertar a uma amiga que está de aniversário hoje. Para ela, feminista como eu, desejava encontrar algo que juntasse meus desejos de uma vida feliz
às nossas ideias libertárias sobre a vida das mulheres no mundo. E foi durante essa procura que encontrei a imagem que ilustra esta postagem, e que também a inspira.

"A verdade te libertará. Mas antes vai te deixar (muito, muito, muito) chateada"
Esta imagem veio daqui

Há alguma controvérsia sobre a autoria original desta frase, mas o fato é que ficou mais famosa por ter sido dita em palestras pela feminista americana Gloria Steinem, que em março completará 81 anos de idade. No momento em que bati o olho na figura, um filme passou na minha cabeça, e me lembrei das minhas próprias sensações de raiva e desencanto nas muitas descobertas de verdades insuspeitadas, mas especialmente daquelas relacionadas com minha vida de mulher em uma sociedade patriarcal. Dentre essas, aquelas verdades duras sobre o nascimento de crianças no Brasil, que a maioria das mulheres só descobre vivenciando-as da pior maneira possível.

Ao longo dos últimos nove anos de militância nesta área, conheci muitas mulheres que, como eu, ao se depararem com os fatos, não conseguiram evitar o sentimento de revolta. Para muitas, é tão impactante, que a negação é a saída imediata. Eu, pelo menos, fiquei assim por quase três anos, imersa em tudo que de bom a maternagem trazia, evitando problematizar ou mesmo me lembrar das circunstâncias do nascimento da minha filha. Se tivesse permanecido nesse estado, obviamente não estaria agora compartilhando estes pensamentos. Mas, em algum momento, por alguma razão desconhecida, passei para a raiva e depois para a libertação que a verdade traz.

Então, essa postagem é para lhe dizer que eu prefiro saber que médic@s e hospitais privados do ABC Paulista beiram a marca dos 100% de cesarianas. Que os poucos partos vaginais que ocorrem em hospitais privados são ainda mais violentos que os que acontecem no setor público. Que a única casa de parto do SUS, próxima da nossa região, tem tido dificuldades em se manter como um local com assistência atípica e adequada. Que as taxas de intervenções e cesarianas não têm caído nos hospitais públicos da região. Que a maioria das maternidades do ABC está entregue à gestão da mesma instituição de ensino, o que as torna maternidades-escola, fazendo com que as mulheres e os bebês se tornem mais expostos a intervenções desnecessárias, abusivas e dolorosas. Que as poucas iniciativas de gestões simpáticas a mudanças de paradigma andam como tartarugas, porque se quer fazer omeletes sem quebrar ovos.

Sim, eu prefiro a verdade. O que não quer dizer que goste dela. É que, exposta, inegável, a verdade nua e crua nos deixa com duas alternativas: ou a gente se conforma e aceita passivamente; ou a gente fica movida por uma indignação tal que quer virar de ponta-cabeça o sistema, quer seja só pra nós, quer seja para todas as irmãs. Dando de cara com a verdade em uma esquina, eu poderia correr no sentido oposto, por me julgar incapaz de lidar com ela ou enfrentá-la. Afinal, fui ensinada a ser assim desde pequenina. Interessante que, mesmo que ninguém tenha me "educado" para o parto, eu sabia direitinho que tinha que obedecer ao que me fosse prescrito. Da mesma forma que aprendi que eu não posso fazer xixi na rua mas os homens podem, que "homens são assim mesmo" (sei lá o que isso significa...), que preciso me vestir de forma "segura" etc.

Portanto, não é sem sofrimento que vem a parte da liberdade. Sentir-se livre para olhar na cara de enfermeir@s e médic@s e dizer "não, obrigada" a qualquer coisa que venham lhe impor requer trilhar um caminho árduo, pedregoso, imprevisível, solitário, acidentado e, muitas vezes, sem saída. Da mesma forma que não é nada fácil assentar-se a uma mesa cercada de pessoas poderosas de uma instituição hospitalar e soltar meia dúzia de palavras na contramão.  Sozinha, a sensação de ser inadequada e desobediente pode nos assaltar, e assim nos encarcera. Por isso a imagem acima me inspirou - além da frase, a ideia de luz. Quando a gente sabe o que nos espera, sai do caminho escuro. E o caminho não fica iluminado só pra nós, mas também pra quem segue junto ou perto. E é por isso que se, para você, é difícil demais encarar essas verdades, a gente te diz: você não está só!

PS: minha amiga ganhou uma imagem bem bonita, que pode ser vista aqui

31 de março de 2014

Lamento necessário sobre a cesárea indesejada

Durante o mestrado na Faculdade de Saúde Pública, tive a felicidade de entrar em contato com diversas pesquisas na área de saúde materno-infantil. Uma delas dizia respeito a um tema de suma importância no nosso país e que ganha proporções cada vez mais assustadoras: a cesárea indesejada.



28 de fevereiro de 2014

MaternaFolia

Sempre que um feriado se aproxima, surpreendentemente (ou nem tanto) muitos fetos entram em sofrimento, placentas envelhecem, líquidos amnióticos evaporam, de modo que numerosas cesáreas "de urgência" se fazem necessárias. Se sua DIP (data improvável de parto) se aproxima de datas festivas, fique alerta, a chance de você ser induzida a uma cesárea antes do tempo é grande.

Essa crítica não pretende demonizar médicos tampouco apontar o dedo para aquelas famílias que acreditam estarem fazendo o melhor para os seus. Mas gostaria de convidar a todos e todas para refletir sobre como estamos tratando a sexualidade e a reprodução: como numa linha de produção fordista - ou com logística just in time - ou como dimensões importantes da afetividade, da fisiologia e da sociedade humanas?

12 de setembro de 2013

É preciso uma aldeia!

Voltando de uma visita a uma mulher parida, muitos pensamentos  me assaltando. Tinha ido lá para passar uns minutos, agenda apertadíssima - cronograma de estudos estourado, aniversário da filha no dia seguinte, mãe visitando, a casa de pernas para o ar (como sempre, aliás!)...
Havia combinado com outra companheira de jornada e vizinha da moça, e lá fomos nós, a pequena dela literalmente a tiracolo no sling. 

Importante dizer que a mulher parida, no penúltimo minuto da prorrogação, ganhou a partida sem ir para os pênaltis: correu da assistência tradicional e do maravilhoso convênio no finalzinho da gestação e foi parir na Casa de Parto de Sapopemba.


9 de agosto de 2013

Memória e Contexto - Parte 3:

No final de 2012, o Grupo MaternaMente foi convidado a falar sobre gestação e parto no programa Memória e Contexto, da TVTO Memória e Contexto tem por objetivo ativar o pensamento e a ação crítica por meio de conteúdos apresentados com o apoio do acervo da TVT e através dos testemunhos de quem viu ou viveu os fatos. No estúdio, convidados e apresentadora refletem sobre a conjuntura atual em um bate-papo informal mesclado com música. No programa que foi ao ar em 12 de dezembro de 2012, com uma hora de duração, a repórter Maria Amélia Rocha Lopes nos recebeu junto à pedagoga Fátima Gonçalves Benevides, integrante do Projeto Menina Mãe da Associação Paulista de Medicina, subsede Santos. A discussão sobre humanização da assistência foi intercalada com deliciosas intervenções musicais ao vivo do artista João Macacão. Recentemente os links para o programa foram disponibilizados online pelo canal, o que nos motiva hoje a refletir sobre os temas novamente. Convidamos você a pensar junto com a gente sobre os nós-críticos que ainda precisamos desatar para termos assistência digna, respeitosa e segura para mulheres nesta etapa de suas vidas.





O que mais me chama a atenção nesse bloco do programa são as imagens do parto hospitalar. Nelas é possível perceber várias intervenções sendo executadas sobre os corpos das mulheres. A gente poderia brincar de um "jogo dos 7 erros"... Pause o filme nas imagens de mulheres parindo e anote tudo que conseguir identificar como procedimento desnecessário, inseguro, doloroso e/ou não baseado em evidência. Eu já contei bem mais que sete...
É comum, entre nós, as mulheres pensarem que tais procedimentos ou condutas são tecnologia agregada para o bem da dupla mãe-bebê, pois são executadas por profissionais de saúde de alta qualificação e dentro de espaços destinados a cuidar das pessoas. Visto que parece ser impossível dissociar parto e esse pacote de intervenções, é também comum que as mulheres que já passaram por uma experiência ruim de parto ou ouviram o relato de alguém, passem a desejar para si a possibilidade de excluir esse sofrimento no nascimento de seus filhos.
Esse é o contexto ideal para a propagação da ideia da cesárea eletiva como alternativa "respeitosa" e indolor. Não fossem as intervenções danosas criadas pela própria assistência, seria bem mais difícil convencer mulheres a terem seus corpos abertos por uma cirurgia altamente invasiva e de grande porte para trazer seus bebês ao mundo. Esse é portanto um cenário duplamente perverso, pois impõe sofrimento para vender conveniências.
Ainda assim, é uma falácia afirmar que as mulheres desejam as cesáreas que por isso abundam no setor privado. Durante a conversa, quis mencionar dois estudos brasileiros que mostram claramente que a maioria das mulheres, no início da gestação, deseja parir. Entretanto, ao final, muitas mudam de ideia e desejam cesáreas. O que lhes acontece durante o trajeto do pré-natal que propicia essa mudança no desejo? Acho que você já sabe a resposta.
Caso queira aprofundar a leitura no tema, recomendo ler os estudos sobre os quais não houve tempo pra falar durante o programa. Nos links abaixo, você os encontra. Boa leitura e boa reflexão!

www.scielosp.org/pdf/csc/v13n5/17 - Estudo executado em hospitais privados da cidade do Rio de Janeiro

www.scielo.br/pdf/rsp/v38n4/21076.pdf - Estudo executado em hospitais públicos dos estados de São Paulo e Pernambuco

7 de agosto de 2013

Há uma década...

Para Sophia, em seu décimo aniversário.

Você e eu, desde então...

Você já me ouviu contar, sei lá quantas vezes. Sem nunca pedir sua permissão, as palavras que contam como você chegou saem da minha boca com certa facilidade. Venho assim relatando como tudo aconteceu em situações as mais diversas. Até em evento científico já contei. Mas não, nunca consegui escrever. Será que hoje dou conta?

Não dá para começar sem dizer que eu tinha um pouco menos idade que você quando pedi à minha mãe - enfermeira de maternidade em hospital militar na época, coração temporal da ditadura - que me levasse para assistir a um parto. Ela não era de me fazer vontades se fosse para comprar alguma coisa - mas movia o mundo para me conceder espaço para crescer. Foi até o chefe e pediu: minha filha quer ver um parto. Ele, oficial-médico do exército, pragmático, perguntou minha idade, sorriu e respondeu: peça a ela que volte a me pedir isso daqui a nove anos. Passei um tempo ainda querendo e depois... esqueci. Foi bom não ter visto partos cheios de intervenção, a todo custo? Foi ruim não ter cumprido o desejo? Nunca vou saber.

Passei a vida adulta oscilando entre desejar ter cinco filhos e nenhum. Mas um  dia a vontade veio com força. Foram onze meses de tentativas, até que você apareceu. Eu estava para completar 40 anos e senti umas borboletas na barriga. Esperei mais uns dias e fiz o exame de sangue: pimba! Fiquei feliz, comemorei com seu pai e com os amigos, com quem tínhamos feito a famigerada aposta das fraldas. Ganhamos! ÊÊÊÊÊ!

Algumas semanas depois, um leve sangramento "velho", um exame de ultrassom e um diagnóstico temido: aborto em curso (papo para outra história...). Que não era, né? Muita apreensão, medo, solidão no repouso absoluto. Quando a gente tira 30 dias de férias, o tempo voa. Mas 30 dias de repouso em "ameaça de aborto" parecem não ter fim.

Dali pra frente eu e você vivemos um passeio! Náuseas e dois episódios mais sérios de vômito à parte, a vida de grávida estava ótima. Eu, sempre muito disposta, nada de cansaço, via minha barriga crescer cheia de energia. Soube que você era você na segunda USG morfológica, com cerca de 22 semanas. A bem da verdade, não sabia minha DUM, e a idade gestacional era datada pela primeira USG, com cerca de 8 semanas.

Li muita coisa na internet, mas não cheguei a descobrir grupos de apoio. Encontrei o site www.amigasdoparto.com.br mas não cheguei a entender que aquilo me dizia respeito. Via relatos e fotos, mas imaginava que não precisava aprender nada sobre aquilo, pois É CLARO que eu seria respeitada em minhas escolhas. Por outro lado, virei "mestra" em aleitamento, sabia tudo sobre pega, aleitamento materno exclusivo, ordenha, estocagem, relactação.

Os meses passaram lisos, até que um dia, por volta da 37.ª semana, senti que a dinâmica estava mudando. Chamei a obstetra, que era uma colega de trabalho, e ela ficou comigo por meia hora, acompanhando a dinâmica das contrações. Parecia preocupada... Tínhamos consulta de pré-natal naquele mesmo dia, no final da tarde. No consultório, o exame de toque revelou colo ainda grosso, mas com  cerca de 3,5 cm de dilatação e a amnioscopia  mostrou cabelos pretos e líquido com grumos. Você tinha cabelos, e eram escuros!!! E eu estava querendo muito te conhecer! No entanto, a obstetra ponderou que era cedo, que você poderia engordar mais e me prescreveu um inibidor de contrações e ... mais repouso.

Na semana seguinte, ela ficou muito surpresa de ver a dilatação do colo completamente regredida a zero. Até hoje me pergunto se era isso mesmo e porquê. Voltei para casa chateada por ter tomado o tal remédio e resolvi parar por conta própria. Não demorou muito, as contrações voltaram e, no dia 6 de agosto de 2003 passei o dia todo com elas, enquanto trabalhava em um projeto frila para um hospital da região, com a equipe deles se reunindo comigo em casa.

Na noite daquele dia 6, que você já sabe ser a véspera dos seu nascimento, fui encontrar minha obstetra para fazer um exame - cardiotocografia - no hospital onde ela estava de plantão.Não tínhamos combinado de você nascer lá, embora o plano fosse um outro hospital também público, mas eu não sabia de fatos que levariam à minha internação naquela noite. Ela tinha medo de me dizer que tinha um compromisso no fim de semana seguinte fora da metrópole, e resolveu aproveitar aquele plantão para "fazer" meu parto. Eu tinha ido para lá sem nada de meu, e duas amigas foram me acompanhando. Ao exame, as contrações que eu vinha sentindo durante todo o dia apareceram e os médicos - uns três, acho - decidiram que eu estava em trabalho de parto. Eu dizia que não, que você ainda ia demorar mais uns dias para nascer (não me pergunte porque, mas eu sabia, rsss...). Subi na maca para ser examinada e, sem ser avisada, tive as membranas descoladas e o tampão removido. Aquilo doeu muito e me senti abusada, violentada. Aquele procedimento me desgovernou e me calou. Saí dali em cadeira de rodas, já com soro de ocitocina ligado na veia, com aquela camisolinha de chita florida amarela. Minhas amigas mal tiveram tempo de se despedirem de mim, e lá fui eu para uma sala de observação lotada.

A obstetra me colocou na última maca, perto da janela, e um biombo me separava das outras. Acho que tinha umas doze no total daquele lado do corredor, e do outro, lá longe, devia ter mais ou menos a mesma quantidade. Um mundo de mulheres, só eu em trabalho de parto. Perdi a conta de quantas vezes vieram me tocar, a memória daquela madrugada é difusa, mas me lembro de algumas pérolas. Certa vez, alguém veio fazer o toque apenas alguns minutos depois de outro alguém - como eu disse que não, fui sutilmente ameaçada com "você precisa cooperar". Eu ainda estava bem "eu mesma" e mandei falar com a Dr.ª X. Ela era preceptora de alunos. Eu não tinha a menor noção, então, de como as coisas ficam violentas para mulheres que parem em hospitais-escola. Em outro momento, uma moça - provavelmente residente ou interna - disse para outra que o trabalho de parto tinha "miado". Em outra ocasião, as duas conversavam sobre como a vagina nunca mais era a mesma depois de um parto normal. Falavam essas coisas como se eu não estivesse ali. Toques sucessivos, frio vindo da fresta da janela, ocitocina com dose aumentada - muitos eram os desconfortos. Ao amanhecer, o inferno havia se aberto. As contrações ficaram muito próximas e duravam muito tempo. Eu sentia como se uma serra em formato de pêndulo passasse lentamente sobre minha cintura e me abrisse ao meio, mal me dando tempo de respirar entre idas e vindas. Ah, havia doulas. Sem nenhuma autonomia de trabalho, sem instrumentos, apenas seguravam minha mão e me olhavam com compaixão. Que dureza...

Nesse momento, a obstetra voltou. Como não havia progresso desde o início da noite - estacionado em 4 cm desde minha admissão às 22:00 h da noite anterior, ela resolveu utilizar comprimidos de misoprostol no canal. Se as coisas já estavam bem difíceis, ficaram piores. Das 7:00 h às 9:30 h, cada contração me fazia pensar que morreria. O plantão dela havia acabado e ela estava assentada ao meu lado, volta e meia me dizendo que eu era a única ali com escolha, que não precisava passar por aquilo, que era só dizer que ela resolvia tudo rapidinho para mim. Me lembro de repetir, com voz de bêbada, que aguentava mais uma. Várias contrações coladas uma na outra e um exame de toque depois, ela resolveu me colocar novamente na cardiotoco. "Hmmm... o nenê tá bradi". Essas foram as palavras mágicas. Acabou a luta - será mesmo que lutei contra alguma coisa? Num instante a maca estava sendo conduzida para o centro obstétrico e eu sendo preparada para a cirurgia.

Detalhes que ficaram na memória: o anestesista, competente, delicado e lindo - eu não estava morta, hehehe! - me cumprimentou, anunciou o procedimento, esperou passar mais uma contração, explicou cada movimento que fazia e acertou na primeira, antes de vir mais uma contração (os intervalos estavam durando menos de 50 segundos, pelo que diziam). Ah, sim: antes da anestesia, assim que cheguei na famigerada sala, vomitei no chão... e disparei a chorar. O bonitão me perguntou se estava com medo e eu: "nãããão, eu tô triiiiiste!". Demoraram a trazer campos e outros apetrechos. Por conta disso, minha camisolinha de chita florida foi suspensa na minha frente e presa no suporte - um campo floridinho... A essa altura já estava com os punhos contidos por faixas de couro e minha preocupação era que já estivessem querendo me cortar enquanto eu ainda sentia as coisas. Falei disso e o cirurgião auxiliar me pediu para levantar a perna - obviamente não consegui. Alguém perguntou como seria seu nome e quando eu disse começou a cantar "Sô fio da véia ô...". Engraçadinho. Daí pra frente tudo foi rápido. Ouvi seu primeiro "ruá!" e só então pareceu uma eternidade até que trouxessem você até o meu rosto.

Você chegou chorando com ritmo. Quando te colocaram perto do meu rosto, você parou. Nossos olhos se cruzaram por alguns segundos, seu cheiro doce impregnou minhas narinas para sempre: é o mesmo perfume que fica na raiz dos seus cabelos quando sai o cheiro do xampu. Mas te levaram, sem a menor chance de nos tocarmos. No segundo que te afastaram de mim, você retomou o choro ritmado e firme.

Não somos nós, mas foi bem assim
Imagem aqui

O que aconteceu depois merece outro relato. Ficaríamos afastadas ainda por 12 longas horas. Não tivemos nenhum registro do nascimento, nem da internação ou da primeira mamada. Tudo que resta é uma foto sua no berçário, tirada por papai. Muitas coisas aconteceram naqueles dias no hospital, que também precisam ser contadas... Prometo que ainda escrevo sobre isso um dia, ok?


1 de agosto de 2013

Memória e Contexto - Parte 2:

No final de 2012, o Grupo MaternaMente foi convidado a falar sobre gestação e parto no programa Memória e Contexto, da TVTO Memória e Contexto tem por objetivo ativar o pensamento e a ação crítica por meio de conteúdos apresentados com o apoio do acervo da TVT e através dos testemunhos de quem viu ou viveu os fatos. No estúdio, convidados e apresentadora refletem sobre a conjuntura atual em um bate-papo informal mesclado com música. No programa que foi ao ar em 12 de dezembro de 2012, com uma hora de duração, a repórter Maria Amélia Rocha Lopes nos recebeu junto à pedagoga Fátima Gonçalves Benevides, integrante do Projeto Menina Mãe da Associação Paulista de Medicina, subsede Santos. A discussão sobre humanização da assistência foi intercalada com deliciosas intervenções musicais ao vivo do artista João Macacão. Recentemente os links para o programa foram disponibilizados online pelo canal, o que nos motiva hoje a refletir sobre os temas novamente. Convidamos você a pensar junto com a gente sobre os nós-críticos que ainda precisamos desatar para termos assistência digna, respeitosa e segura para mulheres nesta etapa de suas vidas.



Neste bloco do programa, dois assuntos ficaram no foco: a Depressão Pós-Parto e a Humanização da Assistência.

Você se sentiu triste, incapaz, incompetente, logo que seu bebê nasceu? Sentia-se mal ao lembrar de como tinha sido tratada pelas equipes de atendimento durante o processo de gestação e nascimento? Conseguiu falar disso com as pessoas ao seu redor? Se venceu essa barreira e contou do seu mal-estar, sentiu-se acolhida?
A maioria das mulheres sente algum tipo de desconforto emocional quando nascem os filhos. Os desafios percebidos, o novo, a privação do sono, os receios ligados às responsabilidades que se apresentam, as dificuldades no relacionamento com @ parceir@, a assistência desrespeitosa e violenta no parto, a desconsideração de suas capacidades, e mais uma lista que você pode continuar escrevendo: tudo isso e muito mais pode desencadear um sentimento profundo de inadequação que, se não for acolhido com afeto, apoio, suporte e empatia pode levar a mulher a um estado depressivo. Estamos muito acostumadas a pensar em nós mesmas como causa e consequência dos problemas que nos acometem, mas precisamos romper com esse raciocínio: esse é um caso claro de responsabilidade coletiva! De sua parte, ponha a boca no trombone e fale do que te incomoda para quem estiver mais perto. Se encontrar um grupo de apoio para o pós-parto, tanto melhor. Conselho para todas as outras pessoas: olhem para a mulher - ela não é um recipiente de carregar bebê! Visitas, ao invés de presentes, levem sua mão-de-obra: passem um pano no chão, levem comida, lavem a louça empilhada na pia, pendurem a roupa no varal, levem o menor para passear na praça. Homens-pais, particularmente: usem este momento para rever tudo o que pensavam antes a respeito de tarefas domésticas e ponham a mão na massa - a casa é responsabilidade de quem nela mora. Pequenos atos que podem mudar o dia de cinza para azul e auxiliar uma mulher a se sentir capaz de dar conta da maternidade.

Quanto à humanização... sinto que temos um caminho longo, tortuoso e acidentado para trilhar. Se fosse fácil, não seria necessário militar por isso, certo? É justamente por estarmos imersas em uma cultura que parte do conceito do corpo feminino como imperfeito e perigoso, portanto objeto de correção necessariamente, que parece às vezes que clamamos no deserto. Assistência baseada em rótulos: adolescente, primípara idosa, com problemas de fertilidade. Todos adjetivos para apontar "defeitos" femininos que justificam uma série de intervenções sem qualquer base científica. Vamos combinar um mantra? "Assistirás com respeito aos direitos humanos e com base em evidências científicas". Simples, não?

25 de julho de 2013

Memória e Contexto - Parte 1: Temos direitos?

No final de 2012, o Grupo MaternaMente foi convidado a falar sobre gestação e parto no programa Memória e Contexto, da TVTO Memória e Contexto tem por objetivo ativar o pensamento e a ação crítica por meio de conteúdos apresentados com o apoio do acervo da TVT e através dos testemunhos de quem viu ou viveu os fatos. No estúdio, convidados e apresentadora refletem sobre a conjuntura atual em um bate-papo informal mesclado com música. No programa que foi ao ar em 12 de dezembro de 2012, com uma hora de duração, a repórter Maria Amélia Rocha Lopes nos recebeu junto à pedagoga Fátima Gonçalves Benevides, integrante do Projeto Menina Mãe, da Associação Paulista de Medicina, subsede Santos. A discussão sobre humanização da assistência foi intercalada com deliciosas intervenções musicais ao vivo do artista João Macacão. Recentemente os links para o programa foram disponibilizados online pelo canal, o que nos motiva hoje a refletir sobre os temas novamente. Convidamos você a pensar com a gente sobre os nós críticos que ainda precisamos desatar para termos assistência digna, respeitosa e segura para mulheres nesta etapa de suas vidas.



No primeiro bloco do programa, falamos de direitos. Fátima chamou a atenção para o fato de as escolas muitas vezes colaborarem para a evasão de adolescentes que engravidam, desestimulando-as a vir à escola para "evitar dar mau exemplo". As adolescentes têm o direito de se afastar da escola em licença-maternidade e podem fazer suas provas em casa, mas muitas vezes esses direitos lhes são negados. Tive um sentimento imediato de indignação ao ouví-la comentar sobre isso, e não pude deixar de pensar em como essa negação de direitos é fundamentada na visão de gêneros que temos na nossa sociedade. Lembrei-me também de uma professora que costuma dizer que, se a gravidez acontecesse no corpo dos homens, talvez aborto não fosse crime, mas um sacramento... De nossa parte, lembrei o quanto era importante estar ciente de que a assistência respeitosa e baseada em evidências científicas se inscreve no campo dos direitos humanos, mas gostaria de ter citado outras normas jurídicas além da Lei 11.108/05, conhecida como Lei do Acompanhante. Quem mandou falar demais? Rsss...

26 de maio de 2013

Eu: que coisa é essa?

Estou caindo de sono, cansada e certa de que as horas passadas aqui, na frente dessa tela e não na cama, farão falta amanhã. Mas também sei que se não botar os dedos para trabalhar agora, vou me deitar, rolar para um lado, rolar para o outro e não vou adormecer.

Hoje foi um dia muito diferente de minha rotina, participei de um workshop sobre carreira e modelo de negócios. Pela primeira vez na vida. Comecei assim: carreira, o que é isso? Jamais tive uma. Modelo de negócios? Não tenho a menor ideia do que se trate. E a cada item que me era apresentado, eu me descobria mais e mais ignorante.

13 de maio de 2013

Mães possíveis fazem o impossível

Picasso, "Maternidade"

Poucos dias atrás postei no Facebook um evento cotidiano com meu filho. Mais ou menos assim:

- Mamãe, eu quero dar um presente de dia das mães pra vc.
- É mesmo?! Que legal! E o que vc vai me dar?
- O que vc quer ganhar?
- Hum... pra mim, o melhor presente é você!
- Eu?
- É. Se não fosse você, eu não seria mãe, não é?

[ele pensa. aí para no meio da calçada e se abaixa.]

- Ô mamãe... Puxa a fita aí pra abrir o seu presente!

Um monte de gente apareceu pra curtir e comentar o ocorrido. Não estou acostumada com tanta popularidade nessa rede social, ainda mais nos últimos tempos, que têm sido de um autoexílio tão consciente quanto involuntário. Fiquei espantada!


18 de abril de 2013

Barriga de grávida: de domínio familiar a domínio público


Minha rotina de mulher trabalhadora pouco se alterou quando me descobri grávida: continuei acordando cedo para pegar carona até o metrô e, depois do metrô, ainda tinha tempo para o pão na chapa e o suco de laranja antes de iniciar a jornada laboral.
No primeiro trimestre, minha barriga não passava de gordura localizada. Hoje em dia, um pouco antes de menstruar, certamente fico mais barriguda do que naquela época. Só lá pelo quarto mês é que minha prenhez se tornou perceptível, ainda assim muito mais pela minha insistência em acariciar a barriga do que pela sua proeminência.

8 de março de 2013

Companheira, a luta é todo dia


Eu não posso, com a minha história e minha vida, fazer uma postagem fofinha nesta data. Acho que nem conseguiria, vocês não me reconheceriam, né? Então, assim de começo, peço perdão. Por não responder, exatamente o que você me perguntou. Por lhe perguntar coisas sobre as quais prefere não falar. Por responder algo que desestabiliza seu conhecimento e lhe causa desconforto. E por quaisquer outras situações...

Desta forma aberta, esta postagem não tem maiores pretensões. Apenas gostaria que você olhasse para si mesma e pensasse um pouco sobre cada luta que empreende após se levantar, todos os dias. Para dar conta, dentro do tempo que tem, de todas as tarefas que se propôs fazer e que seu companheiro não divide com você. Para educar de forma igualitária sua menina e seu menino, contra o que diz todo o seu entorno, e talvez até mesmo o seu companheiro. Para garantir que sua opinião sobre a vida e as coisas tenha o mesmo peso em casa. Para que o seu parto, que acontece no seu corpo, seja só do jeito que você deseja, sem concessões a quem quer que seja. Para que seu trabalho de maternagem seja tão reconhecido como útil para sua família e para a sociedade quanto qualquer trabalho remunerado. Para viver sua sexualidade de forma plena e sobre ela ter total poder de decidir.

7 de março de 2013

Cesáreas no ABC

Fonte: Fundação Seade.
Mais da metade das nossas crianças nasce por via cirúrgica, o que isso quer dizer?
Se você se interessa pelo tema "nascimento" e já conversou sobre o assunto com meia dúzia de pessoas, já deve ter percebido que na nossa região, assim como no conjunto do país, é um tanto difícil uma criança nascer de parto normal.

5 de março de 2013

Sobre mulheres

Hoje passei o dia respondendo a inúmeras felicitações que recebi, algumas por telefone, outras pessoalmente, mas principalmente pelo facebook, praga das nossas vidas!

Eu poderia até fazer uma crítica solene sobre a inutilidade das redes sociais e sobre o tempo perdido na frente do computador.

Mas não hoje.

4 de março de 2013

Renascer mulher-mãe

Imagem daqui
Quando sei que uma criança nasceu, eu fico feliz demais. Mas a felicidade não é só porque a criança nasceu, é também porque uma mãe nasceu junto. Só depois de ser mãe, entendi a intensidade disso. Eu tenho uma visão um pouco radical, talvez pela minha vivência real de gravidez, parto e puerpério, mas eu acredito que, para nascer uma mãe e um bebê, tanta luz, algo precisou morrer, porque nada nasce sem que nada morra. Para que venha a luz, a sombra precisou aparecer. 

25 de novembro de 2012

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA - A VOZ DAS BRASILEIRAS: assista!

Este foi um fim de semana repleto de atividades no grupo. Fizemos ontem o último encontro do ano - relato em breve - com a presença muito especial de Dulce Xavier, e hoje fizemos um delicioso pique-nique no Parque Central, em Santo André, apesar da garoa e do friozinho extemporâneo.

E também hoje, data da Luta Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, juntamo-nos a muitas outras mulheres país afora, na divulgação do vídeo VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: A VOZ DAS BRASILEIRAS. Sem maiores apresentações, já que abaixo segue na íntegra o texto introdutório que está no blog Cientista que Virou Mãe, apenas reforço o pedido: divulgue como puder! É essencial que mulheres e homens deste país percebam os atos de violência praticados pela assistência no ciclo gestação-parto-puerpério.

Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres

 

"Neste 25 de novembro de 2012, completamos um ano de ações coletivas nas mídias sociais, sempre com objetivo de dar mais visibilidade ao tema da violência obstétrica e de desnaturalizar as infrações aos direitos das mulheres, cometidas pelos profissionais de saúde, que muitas vezes passam desapercebidas.
São ações coletivas organizadas por usuárias, pesquisadoras e profissionais da saúde com o objetivo de promover o debate, sensibilizar, denunciar e ir adiante, até que se consiga que políticas públicas
efetivas sejam promovidas no sentido de erradicar a violação
dos direitos humanos das mulheres no parto. Embora estejamos mobilizando centenas de pessoas e falando com cada vez mais frequência sobre o assunto, é importante que as pessoas saibam o histórico do movimento contra a violência no parto - a violência obstétrica, nome que as próprias mulheres cunharam para tais práticas.

Em agosto de 2010, a Fundação Perseu Abramo, em parceria com o SESC, realizou a pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado, onde apresenta a evolução do pensamento e do papel das mulheres em nossa sociedade. Foram entrevistados centenas de homens e mulheres em mais de 170 municípios brasileiros. Os resultados sobre o tema da violência contra as mulheres chamaram
muito a atenção e, neste
contexto, surgiu um dado alarmante sobre a violência institucional sofrida pelas brasileiras: uma em cada quatro mulheres (25%) relatou ter sofrido algum tipo
de violência na hora do parto. Dentre as diversas formas possíveis de
abusos e maus-tratos, tiveram
destaque:
exame de toque doloroso, recusa para alívio da dor, não explicação de procedimentos
adotados,
gritos de profissionais ao ser atendida, negativa
de atendimento, xingamentos e
humilhações. Além disso, 23% das entrevistadas
ouviu de algum profissional algo
como: “não chora que ano que vem você está aqui de novo”; “na hora de fazer não chorou, não chamou a mamãe”;
“se gritar eu paro e não vou te atender”; “se
ficar gritando vai fazer mal pro neném, vai nascer surdo”.




Esses dados chocantes começaram a ganhar repercussão na mídia, com matérias em jornais de grande circulação, publicadas em
fevereiro de 2011.

 

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