Social Icons

11 de dezembro de 2021

Compartihando conhecimentos

 Há uns dias a musa Deborah Delage participou dessa live, falando sobre atenção ao parto, papel da doula e amamentação.



Quanto vale o seu trabalho? E o seu tempo?

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra há muito tempo que há diferenças enormes de ganhos entre homens e mulheres. É um assunto velho e que parece não chamar mais a atenção, mas no primeiro trimestre deste ano, por exemplo, em média, os homens recebiam quase 30% a mais que as mulheres: enquanto os rendimentos médios delas era de R$ 2.174, o deles correspondia a R$ 2.809. 

A diferença salarial entre homens e mulheres acontece para todos os tipos de trabalho, em todos os níveis hierárquicos. Além disso, de tempos em tempos saem notícias sobre setores em que as mulheres compõem a maior força de trabalho, mas ocupam pouquíssimos cargos de liderança. Do ensino superior, à pesquisa e à saúde, entre tantos outros campos, as notícias simplesmente não mudam.

Algumas vezes já fui procurada por amigas pedindo ajuda para calcular quanto deviam cobrar por um determinado trabalho. Especialistas no que fazem, extremamente capacitadas, sentiam-se perdidas na hora de cobrar pela sua atividade produtiva, pelo seu conhecimento e, porque não dizer, pelo seu tempo.

Não sei o que dizem os gurus de negócios, administração, marketing ou seja lá que campo de conhecimento possa ser ativado para tratar da remuneração de um trabalho. Mas pessoalmente preciso avaliar quanto tempo terei de investir em determinada atividade – sendo ela remunerada ou não – simplesmente porque sobram atividades e faltam horas no dia. Uma necessidade imposta pela vida.

Por mais óbvio que isso seja, essa obviedade não entra na conta da maioria das mulheres que conheço quando avaliam seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Eu costumava me achar uma profissional pouco produtiva, entendia-me como uma procrastinadora crônica, e sentia vergonha por muitas vezes só finalizar as tarefas em cima da hora, ou mesmo com atraso. Meus orçamentos eram baixos demais, e eu raramente tinha uns trocados para comprar algo de que precisasse. Enquanto isso, lia sites e livros sobre formas milagrosas de vencer a procrastinação e sobre como ser mais produtiva... e claro, nada funcionava. Estava fadada ao insucesso, era o que eu pensava, e acostumei-me a pensar dessa maneira a meu respeito.

Não que esse modo de agir e pensar tenha sido totalmente superado (olá, patriarcado!), mas ao refletir sobre o meu tempo disponível, sobre as minhas prioridades e sobre as minhas necessidades, aprendi a dizer "não" para aquilo que, por algum motivo, não cabe no meu dia. Também aprendi a me valorizar mais nas atividades que faço em troca de dinheiro. Entendi que para realizar determinada tarefa, preciso não apenas de conhecimento, mas também (ou principalmente, a depender do caso) de tempo. Tempo para refletir sobre o processo e os campos de conhecimento envolvidos, tempo pra colocar a mão na massa e executar a tarefa.

Periodicamente preciso renovar meus votos de comprometimento comigo mesma, para que não volte a desrespeitar minha existência como mulher, mãe e trabalhadora. Preciso cozinhar, lavar roupa e limpar a casa, porque sem isso minha vida e a do meu filho se tornam muito piores. Também preciso ter tempo para conversar com ele, brincar, ver um filme, ler um livro antes de dormir (e sem que eu mesma adormeça no meio da leitura, vencida pela exaustão). Eu e ele enfrentamos pandemia, com mudança de casa e de cidade, escola nova, ciclo novo, aulas online, aulas presenciais, tudo isso tendo em perspectiva que ele é um adolescente como outro qualquer, ou um pouco mais intenso, pelo fato de ser autista. Motivos a mais para pensar muito bem o que faço com a minha energia produtiva!

Eu mesma me pergunto, quanto vale o meu trabalho? E o meu tempo? A cada clique sou invadida por uma sociedade machista neoliberal, apontando o dedo para mim e dizendo que sou improdutiva e procrastinadora, e que meu tempo pouco vale. A pergunta que devolvo, agora, é: segundo os padrões de quem?

Em termos de dinheiro, não recebo um real de quem quer que seja pelo trabalho mais árduo que realizo há mais de 16 anos, o de ser mãe. Ser mãe tem muitos significados, e um deles, em especial em nossa sociedade, é se matar de trabalhar, receber críticas de todos os lados e lucrar zero reconhecimento. O trabalho de ser mãe ocupa todas as 24 horas do dia, nos sete dias da semana, o ano inteiro, sem folgas nem férias. Mas mesmo sendo árduo e nada reconhecido, ser mãe é o trabalho mais valioso que realizo, com 100% de certeza. Para mim, não há valor maior do que trabalhar para que meu filho cresça feliz e saudável, desenvolvendo-se em sua plenitude. Há muito amor envolvido nesse trabalho, sim, mas nem por isso o trabalho deixa de existir. 

A depender dos privilégios de cada pessoa, a aridez da maternidade pode ser amainada – contudo, é bom lembrar, em geral isso vem com o envolvimento de outras mulheres menos favorecidas e na maioria das vezes negras. Acaba sendo uma espiral de exploração do trabalho das mulheres, da qual as mais pretas e menos escolarizadas têm pouca ou nenhuma chance de escapar. Em geral, mal valorizamos o trabalho que essas pessoas desempenham quando estão sendo remuneradas, e sequer olhamos para tudo aquilo que elas produzem em seus lares, como mães, amigas, cuidadoras... Então, pergunto, quanto vale o trabalho dessas pessoas? E o tempo delas?

Se medimos o valor do trabalho e do tempo pela régua da sociedade patriarcal neoliberal, atividades como amamentar, trocar fralda e colocar pra dormir ficam na invisibilidade. Na nossa sociedade, isso não é visto como uma atividade produtiva, nem como trabalho. Meu filho não mama nem usa mais fralda, mas tudo aquilo que faço no exercício da maternidade acaba nesse mesmo lugar do trabalho invisível e não remunerado. Essas atividades não entram na conta da produtividade e aparecem como procrastinação. Assim, não há como eu me enxergar como pessoa bem-sucedida de acordo com essa perspectiva. Por isso mesmo, sempre preciso me lembrar de assumir outro ponto de vista, para que diariamente eu possa ser protagonista do meu trabalho e do meu tempo.

9 de agosto de 2021

Órfãs. Órfãos.

O Airbus A380: de 489 a 615 passageiros
O Boeing 747: 410 passageiros
Um 747 e um A380 lotados se espatifando no chão, sem sobreviventes: aceitaríamos isso todos os dias?

Os maiores aviões de passageiros no mundo são o Airbus A380 e o Boeing 747, que são capazes de transportar de 410 a 615 passageiros de uma só vez. Uma maravilha tecnológica, não é mesmo? E se todos os dias duas dessas aeronaves despencassem do céu, matando todas as pessoas que estavam a bordo? Pois é o que está acontecendo no Brasil, nestes "dias melhores" de pandemia, em que em média 907 pessoas morrem por dia de Covid-19. Um Airbus A380 e um Boeing 747 mergulhando no chão, sem sobreviventes. Por dia. Todos os dias. Nos últimos sete dias. Motivo para comemorar? Sei não. 

E se colocarmos uma lupa no problema, enxergaremos ainda outros. Quem são essas pessoas que morreram por Covid-19? Deixaram família? Parentes? Filhos e filhas, talvez? Netos e netas, já que muitas eram idosas? Será que essas pessoas que se foram de uma hora para outra deixaram para trás dependentes financeiros? Dependentes de cuidados?

Tudo isso ao mesmo tempo.

Em 2019, no Brasil, uma pessoa idosa era responsável por mais da metade de todos os rendimentos recebidos em cerca de 15 milhões de domicílios. Vale mencionar que esse dinheiro recebido pelas pessoas mais velhas provinha de aposentadorias e pensões, e também do trabalho, que essas pessoas continuaram a executar mesmo após os 60 anos.

Neste biênio 2020-2021, a pandemia de Covid-19 tem afetado as pessoas mais velhas de maneira bastante contundente: são elas as que mais morrem por essa doença e, no Brasil, são também as que tiveram maior redução da renda do trabalho. Como se isso por si só já não fosse trágico, é preciso dizer que mais de 13 milhões de lares brasileiros (mais de 18% do total de domicílios) só possuíam como renda o valor recebido por uma pessoa idosa. Um estudo calculou que se todos esses idosos falecessem, aproximadamente 5 milhões de pessoas com menos de 60 anos ficariam na rua da amargura, sem qualquer tipo de renda.

Olhando para o outro extremo da vida, encontramos ainda outras pessoas impactadas pela pandemia, mesmo não sendo elas as principais vítimas fatais da Covid-19. Crianças e adolescentes, afastados das escolas e de todos os outros espaços de socialização, estão também perdendo pais, mães, avôs, avós, seus cuidadores e provedores.

Outro estudo (este internacional) estimou que até abril deste ano, mais de 1 milhão de crianças e jovens de até 18 anos ficaram órfãs de pai, de mãe ou de ambos por causa da Covid-19. Se acrescentarmos a morte de avôs e avós que moravam junto com essas crianças e jovens, 1,5 milhão de pessoas menores de idade perderam seus cuidadores no mundo. No Brasil, com dados mais atualizados, cerca de 263 mil crianças e jovens vivem essa situação: estão sem seus cuidadores e/ou responsáveis financeiros, porque eles faleceram de Covid-19.

Estimativas de crianças e jovens que ficaram órfãs por causa da Covid-19
Estimativas atualizadas podem ser encontradas aqui: https://imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil

É necessário fazer um destaque no caso brasileiro, com relação às mortes maternas relacionadas à Covid-19. Há anos sabemos que a taxa de mortalidade materna no país é alta demais, em especial se considerarmos que somos um país de renda média e que temos um sistema de saúde que provê assistência pré-natal e ao parto para quase todas as mulheres. Mas no contexto da pandemia, nossos resultados são assustadoramente ruins, com muito mais mortes de mulheres em seu ciclo gravídico-puerperal. Segundo o observatório obstétrico de Covid-19, temos até o momento 1.559 mortes maternas ligadas a essa doença, com uma letalidade inaceitavelmente mais alta entre pretas e perdas. 

Dados do observatório obstétrico de Covid-19
As desigualdades por raça/cor saltam aos olhos: entre as mulheres pretas que tiveram Covid-19 na gestação ou no puerpério, 17,2% faleceram


Nossa primeira reação talvez seja de consternação, misturada a um sentimento de fatalidade. Mas é importante dizer que se a pandemia não poderia ter sido evitada diretamente pelos governos dos países individualmente, a magnitude do problema tem relação direta com a resposta elaborada pelos líderes nacionais. Existe um amplo campo de conhecimento chamado saúde pública, que tem teoria, método, prática e pesquisa próprios, para nos dizer como é melhor agir diante de problemas que afetam o bem-estar da população. Por isso mesmo temos países com resultados tão diferentes, considerando número de mortos em relação à população, fechamento ou não das atividades comerciais, culturais e educativas, e por aí vai. Desnecessário dizer que estamos entre os piores países nesses quesitos, mesmo tendo um sistema de saúde universal e gratuito.

Mesmo que queiramos desconsiderar a responsabilidade do atual governo federal nesse problemão chamado pandemia, não podemos nos resignar a olhar, por exemplo, para essas crianças e jovens que perderam seus principais cuidadores para a Covid-19.

De epidemias anteriores, sabe-se que crianças e jovens, mesmo que sobrevivam à crise sanitária, apresentam problemas psicossociais, neurocognitivos, socioeconômicos e biomédicos quando perdem um de seus cuidadores, mesmo quando podem continuar contando com outro cuidador. Por exemplo, um adolescente que perde seu pai, e passa a viver apenas com sua mãe. Para essas pessoas jovens que passaram pelo luto por causa de uma epidemia, os riscos de adoecimento incluem estresse pós-traumático, depressão e tentativas de suicídio. Outros riscos incluem violência doméstica, além de violência física, emocional e sexual. 

Que crianças e jovens de hoje carregarão para sempre a história da Covid-19 em seus corpos, não tenho qualquer dúvida. Mas em que medida sua noção de futuro está comprometida? As estimativas dos estudos trazem os que efetivamente perderam parentes e cuidadores, e quanto aos adultos que sobreviveram, mas que estão sofrendo com sequelas da Covid-19? Não são poucos os que além de não conseguirem mais trabalhar também precisam e precisarão de suporte para as tarefas diárias. Quem será responsável por isso?

Pensando no que os estudos trazem como consequência direta para crianças e jovens que ficaram órfãs, o mesmo campo da saúde pública que ajuda a organizar a estratégia de combate à doença auxilia também na elaboração de medidas de mitigação. Existem intervenções educativas para prevenção de violência, por exemplo, e qualquer tipo de programa visando proteger essas crianças e jovens que ficaram órfãs por causa da pandemia deve também proteger meninas de casamentos precoces, de gestações não desejadas e doenças transmissíveis sexualmente, especialmente o HIV. Por fim, mas não menos importante, as intervenções devem ser no sentido de fortalecer o cuidado sem a institucionalização dessas crianças e jovens. 

Traduzindo isso para o nosso cotidiano brasileiro, significa olhar principalmente para as famílias e regiões vulnerabilizadas e prover muito apoio para que tenham casa, água, comida, roupa, saúde, educação, lazer, ambientes protegidos da violência para que possam crescer e se desenvolver. É da geração futura que estamos falando, não há como negligenciar (ainda mais) a sua existência.

156.800 crianças e jovens ficaram órfãs de pai ou de mãe por causa da Covid-19. 
180.700 sofreram com a morte de um ou ambos os pais ou com a morte do avô, da avó.
263.200 menores de idade tiveram de lidar com a morte de um ou ambos os pais, morte dos avós e/ou morte de outros parentes mais velhos co-residentes.

1.559 óbitos maternos relacionados à Covid-19.

Referências:
https://www.scielo.br/j/csc/a/pgDTDv7hLHfHRtsvbFbsQqg/?format=pdf&lang=pt
https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2821%2901253-8
https://imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil
https://observatorioobstetrico.shinyapps.io/covid_gesta_puerp_br/



11 de abril de 2021

Nascer e morrer, os números contam

Recentemente publiquei alguns gráficos no Instagram falando do número de residentes no ABC que dão à luz: muitas delas vão para outros municípios na hora de ter o bebê, e sabemos por experiência que isso é verdade. Chamou a atenção na série de gráficos como o número de nascimentos vem diminuindo ao longo dos anos, e provocada pela mana Deborah, prometi que estudaria a respeito para entender melhor essa tendência.

Mal tive tempo de começar, deparei-me com o alerta do Prof. Miguel Nicolelis, de que em abril deste ano o número de óbitos ultrapassaria o número de nascimentos no Brasil, em um resultado inédito na nossa história. Saiu, depois, uma matéria no El País falando sobre isso, e de forma não surpreendente, um município da nossa região é citado já na capa da matéria.



De repente eu me peguei tentando desacreditar nessa informação. Inventei várias desculpas mentais para esse disparate, puxa, talvez o número de nascimentos já estivesse se reduzindo tanto que isso já fosse acontecer mesmo. Precisa ver direito esse dado aí, pensei. Bem, corri para olhar as bases de dados públicas que geralmente consulto, do Ministério da Saúde, para verificar a notícia eu mesma. Ocorre que essas bases demoram muito a ser atualizadas, e obviamente isso não é à toa. Então segui a pista da matéria do El País, e abri o site dos cartórios de registro civil.

A partir desse site é possível consultar números do movimento do registro civil: o que os cartórios registraram de nascimentos, casamentos e óbitos. Na emergência da pandemia, criaram ainda uma consulta específica para a Covid-19. A base das informações são as declarações de nascido vivo (preenchida pelo hospital/maternidade ou pela pessoa que prestou assistência ao parto), de óbitos (a famigerada DO, também fornecida por um estabelecimento ou profissional de saúde) e de casamentos. Não há referência, no site, sobre quando foi a última atualização dos dados (ou tem e eu não vi). De toda forma, é uma possibilidade de consulta, ainda que os dados sejam preliminares. É importante ter isso em mente. Não sei como os dados do registro civil são tratados, mas na área da saúde sabe-se que muitas vezes é preciso retificar algumas informações, passados meses ou mesmo anos da ocorrência. Por exemplo, as mortes de mulheres em idade reprodutiva precisam ser investigadas, para descartar que tenham sido relacionadas à gestação, ao parto ou ao aborto. Isso serve para identificarmos com mais precisão as mortes maternas e, assim, criarmos políticas para seu enfrentamento (o que não necessariamente tem acontecido, diga-se).

Mas voltando aos dados de nascimentos e óbitos... Como a plataforma do registro civil é muito ruim para tabular dados, peguei dela as informações de 2020 e 2021, que não estão disponíveis em outras fontes. Tirei dados de anos anteriores da Fundação Seade, que têm como base também as informações do registro civil, mas que passam por uma análise de consistência antes de irem ao ar. Os dados mais recentes dessa base são de 2019 e mostram que de fato desde 2009 vemos uma pequena tendência de redução de nascimentos. Mas algo muito discreto.

Fonte: Fundação Seade.

E as mortes? Olhando para os números absolutos, elas vêm aumentando desde 2009 – mas não me parece um acréscimo alarmante, pelo menos não à primeira vista. No gráfico abaixo, usei a mesma escala do gráfico de nascimentos, de forma que é possível comparar a magnitude dos números, ou seja, o volume de nascimentos e óbitos entre os anos de 2009 e 2019 – um intervalo de dez anos antes do início da pandemia, portanto.


Fonte: Fundação Seade.


Ok, até aqui, nada muito surpreendente, certo? Número de nascimentos em patamar ainda muito superior ao de mortes. O que significa que a população da região foi crescendo continuamente ao longo desse período, e possivelmente com mais pessoas chegando às idades mais avançadas. (Parêntese. Não faz muito tempo que eu descobri que envelhecer é um privilégio: pessoas pretas e pardas vivem muito menos do que as brancas. E esse é um assunto tão sério que merece ser tratado de maneira bastante cuidadosa, futuramente.)

Mas se até 2019 não havia nada de muito surpreendente entre nascimentos e óbitos, o que aconteceu em 2020? 


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.

Como se nota, há uma variação no número de nascimentos ao longo do ano, o que é esperado. Isso aconteceu também em anos anteriores – somei os nascimentos registrados na Região do ABC para o gráfico não ficar muito confuso, mas na imagem a seguir dá para perceber a variação ao longo do ano, e também dá para notar que em 2020 houve menos nascimentos em comparação com os dois anos anteriores. Mas algo muito discrepante? Não tanto assim.

Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil; Fundação Seade.


E os óbitos? No início da pandemia, o que mais ouvimos foi da importância de frear a disseminação do vírus da Covid-19 para "achatar a curva" da doença, numa referência justamente ao gráfico do número de casos. Sabíamos que muita gente que ficasse doente iria precisar de hospital e que nosso sistema de saúde não daria conta de atender todo mundo se não evitássemos que a doença se espalhasse. Hoje já sabemos muito mais sobre o vírus e a doença que ele causa, mas é fato que não só o número de hospitalizações cresceu, como também o número de mortes. Sem separar os óbitos ligados à Covid, colocando tudo no mesmo balaio, é possível ver que o número total de pessoas que morreram no ano passado aumentou muito em junho – nosso pico de mortes, até então.

Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.


Tenho certeza de que muitas pessoas vão dizer que isso é também uma variação ao longo do ano, como vemos entre os nascimentos, e que portanto não há o que se comentar a respeito. Pois então, fiz com os óbitos o mesmo que fiz para os nascimentos, somei o número de mortes da região por mês, de 2018 a 2020.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil; Fundação Seade.


A linha cor de laranja, mais clara, mostra o número de mortes no ABC paulista em 2020: vejam como o pico do meio do ano é muito mais acentuado do que nos anos anteriores. A linha até voltou a se aproximar à dos anos anteriores, mas terminou 2020 em ascensão. Isso significa que em 2020 tivemos muito mais mortes na região do que costumávamos observar. E o que veio depois – ou seja, neste ano de 2021 – é realmente assustador. Fiz um gráfico juntando nascimentos e óbitos da região, de janeiro do ano passado até março deste ano.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.


A linha azul é dos nascimentos. A cor de laranja, dos óbitos. Não bastasse o pico de junho de 2020, vemos aí um Everest em março deste ano, ultrapassando em muito o pico do ano passado e o número de nascimentos do mesmo mês. Caso não tenha ficado suficientemente visível, vou colocar outro gráfico, que traz os mesmos dados, mas expostos de uma maneira diferente, separando 2020 de 2021. Janeiro, fevereiro e março estão à esquerda.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.


O número de óbitos inclui aquelas pessoas que perderam a vida pela Covid-19, mas não só. Há também aquelas que ficaram doentes no ano passado, mas nunca se recuperaram plenamente, e morreram agora por problemas neurológicos ou do coração, por exemplo, com sequelas da Covid-19. Há ainda as mortes de pessoas com problemas diversos, que não foram atendidas no tempo adequado, por falta de vagas no hospital ou porque ficaram com medo de procurar um serviço de saúde. Tem também as mortes "que sempre aconteceram", por outras causas variadas, entre elas a de mulheres que não receberam cuidado adequado na gestação, no parto e no aborto, por exemplo.

Estou dizendo que pela primeira vez na história recente da nossa região registramos mais mortes do que nascimentos. Isso não aconteceu porque o número de nascimentos caiu, ou seja, porque as pessoas estão decidindo ter menos filhos, não! O número de nascidos permanece relativamente estável. Os estudiosos do tema (que são chamados de demógrafos) dizem que o número de mortes só viria a ultrapassar o de nascimentos no Brasil em 2047 – em uma transição lenta e gradual, como aconteceu na maior parte dos países ricos.

Quais as consequências para a nossa sociedade? Se continuarmos tendo muito mais mortes do que nascimentos, a nossa população (o número de pessoas que moram na região) vai diminuir. E de um jeito brusco, inesperado, com muita tristeza, pelo excesso de mortes, e não pela decisão das pessoas de terem menos filhos. De imediato, já podemos sentir esse efeito, no luto das famílias, que perdem uma, duas, três pessoas próximas em um intervalo de tempo muito curto. Como essas famílias se reestruturam? Emocionalmente, é devastador. E financeiramente? Embora mais homens estejam morrendo de Covid-19, as mulheres sofrem o impacto dessa pandemia de maneira devastadora, porque são elas que cuidam de todas e todos, são também a maioria na linha de frente, como profissionais de saúde. A Agência Pública publicou uma reportagem muito competente sobre famílias que perderam sua mãe na pandemia.

Mas para além dos reflexos nas vidas individuais de quem fica, precisamos pensar também nos significados dessas mortes em excesso para a nossa sociedade. Em uma perspectiva coletiva, de uma hora para outra vimos uma geração de pessoas mais velhas ser dizimada. Aos poucos, o Brasil vinha conquistando uma maior expectativa de vida, com melhores condições de sobrevivência para a população, mas isso se perdeu em questão de meses, e ao fim de 2020 já havia quem apontasse a redução na expectativa de vida em dois anos. Isso é muito significativo, especialmente se pensarmos que para muitos grupos o impacto deve ter sido ainda maior, por exemplo, para pretas e pardas e para povos indígenas. Em um contexto de crise como o que já vivíamos, isso é muito relevante, visto que muitas famílias tinham como única renda a pensão ou aposentadoria da pessoa idosa com quem viviam. Era a vó ou o vô que tinha um dinheirinho todo mês para garantir a feira. E agora, ela ou ele, ou os dois, se foram. Para um governo federal que não se importa com as pessoas que estão padecendo, isso é uma ótima notícia, pois significa a "economia" de algum dinheiro no pagamento desses direitos. Isso é de uma perversidade terrível, e tem até nome, chama-se necropolítica, quando o Estado (o governo da nação) efetivamente escolhe quem vai morrer, por meio de suas políticas ou pela omissão, por permanecer sem qualquer ação quando deveria tomar alguma atitude.

Se do ponto de vista das finanças familiares essas perdas são já sentidas, na perspectiva cultural e histórica talvez demoremos um pouco mais para compreendê-las. Embora não tenhamos o costume de valorizar os saberes das pessoas mais velhas, são elas a carregar nossas raízes, nossas origens, as histórias de nossas vidas antes mesmo que nascêssemos. As memórias, as práticas, as lutas, e mesmo os carinhos e afetos se foram, de maneira irrecuperável.

Ainda falando da necropolítica, mesmo com as festas das elites ricas sendo noticiadas na TV, sabemos que quem mais sofre com a Covid-19 são as pessoas que precisam sair para trabalhar todos os dias. Quem fica vivo tem de se virar no meio da pandemia, sem auxílio governamental, sem políticas que permitam o trabalho seguro, com uma perspectiva muito longínqua de tomar vacina.  São essas pessoas que se expõem no transporte público vergonhoso (sempre lotado, nunca alvo de melhorias, nem mesmo na pandemia), no trabalho sem carteira assinada ou com direitos precariamente garantidos, sem equipamentos de proteção, sem adequação do ambiente de trabalho e sem orientações adequadas sobre como se proteger, com moradias superlotadas, sem infraestrutura e sem possibilidade de isolamento de familiares com quem moram... Nesses contextos, sobreviver é mesmo um ato de resistência.

Agora, falando de um aspecto mais biológico, vemos que cada vez pessoas mais jovens estão se infectando e morrendo de Covid-19. Sobre isso, é importante dizer que o vírus que causa a doença não se manteve o mesmo desde o início da pandemia, ao contrário, como um bichinho muito esperto que é, tem se modificado para infectar cada vez mais pessoas e de maneira mais avassaladora. E nós estamos contribuindo para isso, pois quanto mais o vírus circula, mais propenso ele fica a se modificar (sofrer mutações). Isso quer dizer que depois de acabar com a memória de muitas famílias, e de ameaçar a subsistência de outras tantas, matando os idosos, agora estamos vendo a pandemia ameaçar a força de trabalho ativa, aquelas pessoas que estão no batente todos os dias, que saem para ganhar o pão. Se as famílias perderam avós e avôs no ano passado, agora estão perdendo mães e pais. 

Depois de olhar esses gráficos, eu não sinto outra coisa, a não ser horror. O horror de pensar que amanhã, dia 12 de abtil, o Estado de São Paulo relaxa suas medidas já nada austeras no combate à pandemia. Com mais pessoas circulando pelas cidades, inclusive estudantes, o que podemos esperar para os próximos meses? Será que prefeitos e secretários do ABC paulista usarão o conhecimento científico? Será que efetivamente tomarão atitudes eficazes para gerir a pandemia? Ou será que continuarão de olhos fechados a esses dados? E que ninguém se iluda com os números absolutos. Nenhuma cidade do ABC paulista se safou do excesso de mortes em março deste ano. Comparando o número de mortes de março deste ano com o de março do ano passado, vejam só quem teve o maior aumento porcentual.


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.

A cidade que se gaba de ter o maior IDH, de ser um ótimo lugar para viver, de estar vacinando muita gente... São Caetano do Sul, cidade de população e território reduzidos, mas por onde muito dinheiro circula, foi a que teve o maior aumento proporcional de óbitos em março deste ano na comparação com março do ano passado, quando a pandemia ainda não havia se instalado plenamente por aqui. Foram quase três vezes mais mortes. Logo haverá alguém a reclamar, dizendo que o município é pequeno e que, portanto, o número absoluto de mortes é reduzido, contexto em que é fácil ter um aumento de 300%, por exemplo, quando se passa de 2 para 6 óbitos. Argumento semelhante poderia ser usado por Rio Grande da Serra, que em 2020 teve uma média mensal de 19,9 óbitos e, em março de 2021, registrou 34 mortes. Já em São Caetano a média mensal de mortes no ano passado foi de 146,9, com 132 óbitos em março de 2020, e 390 falecimentos em março de 2021. Como se nota, os números têm maior magnitude e, o mais relevante nessa história, o município de São Caetano tem muitas condições de atuar de maneira efetiva contra a Covid-19, se houver vontade política.  

O gráfico a seguir é uma repetição, só com um jeito diferente de mostrar os dados. Uma maneira de dizer vários palavrões ao mesmo tempo, um jeito de repetir, precisamos ouvir o que a ciência diz a respeito de como controlar a pandemia. Do jeito que vai, nós faremos parte dessas estatísticas nos próximos meses. Alguém duvida?


Fonte: Portal da Transparência do Registro Civil.










 

Apoio

Aqui você encontra material sobre evidências e boas práticas relativas à saúde e ao bem-estar da dupla mãe-bebê. Fique à vontade e entre em contato, adoramos uma boa conversa! Envie um e-mail para grupomaternamente@gmail.com ou entre no grupo do Facebook.

Território

Atuamos principalmente em Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (o ABC paulista), mas também na capital paulista e em outros municípios do Estado de São Paulo.

Articulação

Procuramos nos articular com outros movimentos sociais e com as instâncias gestoras, com o fim primordial de defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e de instaurar um novo paradigma de assistência à saúde da mulher.