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19 de julho de 2016

Cesariana: direito de quem?

Resolução do CFM e projeto de lei desviam atenção para o tempo de gestação e ignoram evidências científicas e direitos da mulher


Faz quase um mês, saiu no Diário Oficial uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) segundo a qual “é ético o médico atender à vontade da gestante de realizar parto cesariano”. Por propor que a cirurgia seja realizada apenas após a 39ª semana de gestação, de início a resolução foi festejada por algumas mulheres, que enxergaram na norma uma forma de proteção ao feto e aos direitos da mulher. A leitura descompromissada e desatenta da resolução pode levar a tal interpretação, contudo, algumas respirações a mais permitem oxigenar a discussão.


Quem determina com que idade gestacional o bebê está pronto para nascer, senão o próprio bebê?


O que diz o CFM
De maneira geral, a resolução do CFM diz que a mulher tem o direito de optar pela cesariana, que a decisão deve ser registrada em um termo de consentimento, que a cesariana só deve ser realizada a partir da 39ª semana de gestação e que se o médico não concordar com a cesariana deverá encaminhar a mulher para que outro profissional a atenda. Tomados isoladamente, os quatro artigos que compõem a resolução do CFM podem parecer benéficos, por estabelecerem a idade gestacional mínima para que se realize a cesariana e ao mesmo tempo garantirem o direito de escolha da mulher.

O que o CFM não conta
Há muitos pontos importantes ignorados nesse meio de campo, a começar pelo fato de que os jogadores não atuam todos pelo mesmo time. Ao contrário do que se faz pensar, muitos médicos não trabalham em benefício da saúde da paciente-mulher tampouco em prol da saúde fetal, uma vez que não consideram as melhores evidências científicas em sua prática. Além disso, não aceitam nem respeitam as escolhas da mulher, a não ser que essas “escolhas” estejam totalmente de acordo com os interesses deles mesmos, médicos. Um exemplo rápido, banal e de fácil constatação: todo mundo está cansado de saber que o parto normal é melhor para a mulher e o bebê (portanto, a melhor escolha do ponto de vista da saúde e da ciência), mas quantas mulheres “conseguem” ter parto normal? A maioria das gestantes faz tudo “direitinho” para que o parto normal seja possível, comparece às consultas de pré-natal e tudo o mais, contudo, “misteriosamente”, menos da metade das mulheres “consegue” ter um parto normal no Brasil. Onde fica o respeito ao protagonismo e à autonomia de escolha da mulher, nessas situações?
Apesar da vontade da mulher, de seus cuidados com a própria saúde, das evidências científicas, de praticamente todos os nascimentos acontecerem com a assistência de médicos e em hospitais no país, apesar disso tudo, as cesarianas predominam, a mortalidade materna continua alta e dia após dia ouvimos relatos de violências e humilhações que as mulheres sofrem quando vão dar à luz, em especial quando desejam um parto normal. Então, nesse contexto, qual o papel da resolução do CFM? O que muda com essa resolução?


O que é necessário enxergar
A norma do CFM se assemelha a uma “pegadinha”, uma situação planejada nos bastidores para enganar transeuntes desatentos e com isso entreter a audiência. Reveste-se de palavras bonitas como segurança, autonomia, direito e consentimento, cujo valor dificilmente se pode questionar, para ratificar, na realidade, algo que os médicos já praticam há muito tempo: a cesariana por conveniência médica. Mas não seria positivo determinar que a cesariana eletiva (ou seja, sem necessidade clínica) só aconteça depois da 39ª semana de gestação? De certo modo, sim, já que no Brasil mais da metade dos bebês nasce por meio de cirurgia cesariana, em especial entre a 37ª e a 38ª semana gestacional. Mas talvez estabelecer o parâmetro de 39 semanas seja apenas uma medida acanhada de redução de danos, uma vez que para mulheres de risco habitual o bom mesmo é esperar o início do trabalho de parto, o que acontece antes de ela chegar a 41 ou 42 semanas de gravidez.


O que mostra a ciência
Já faz algum tempo que a ciência mostra que a cesariana não é um procedimento inócuo. Ao contrário, o excesso de cesarianas em um grupo de pessoas (na população brasileira, por exemplo) traz prejuízos à saúde da mulher e do bebê: quando mais de 15% dos nascimentos ocorre por via cirúrgica, a mortalidade e a morbidade de mulheres e bebês aumentam. Há ainda prejuízos para a formação do vínculo entre a mãe e o recém-nascido, para a amamentação, para o bem-estar emocional da mulher, sem contar os problemas de saúde para a mulher em futuras gestações. Mais recentemente, os estudos começaram a mostrar que há ainda outros problemas de longo prazo para aqueles que nascem de cesariana, como maior chance de ter leucemia, de sofrer de problemas respiratórios, obesidade, alergias, entre outros.
A ciência bem feita, vale dizer, é aquela que se permite a dúvida e está aberta ao questionamento e à mudança. Todavia, o aprendizado das profissões de saúde se dá principalmente na prática, à revelia da ciência, e com base na observação de pares mais experientes e na reprodução acrítica de suas condutas. Tudo se desenvolve como em uma tradição familiar, em que o patriarca dita as regras e elas se fazem cumprir, porque “sempre foi assim”. São, portanto, como regras inquestionáveis e imutáveis. Essa, infelizmente, é a realidade da atenção ao pré-natal e ao parto no Brasil, ou seja, muito baseada em dogmas e distante das práticas recomendadas pela ciência.


O que hospitais e gestores (não) fazem
Se a prática médica é tão deletéria para a saúde de mulheres e bebês, por que tudo continua como está? De fato, há mais de 30 anos se apontam os problemas da assistência à gestação e ao parto no país. Desde o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism, do início da década de 1980) até a Rede Cegonha (de 2011), algumas iniciativas buscaram melhorar a qualidade da atenção, sem avanços suficientes, como se pode constatar. Muitos fatores colaboram para a permanência desses velhos problemas, e destacamos aqui a inexistência de regulação da prática médica, a falta de vigilância sobre as maternidades e os conflitos financeiros gerados no setor de saúde com a presença dos convênios e seguros de saúde.
Os estabelecimentos de saúde não têm respondido por sua parcela de responsabilidade nos resultados que geram – aliás, de modo geral, eles sequer publicizam seus indicadores, como número de mulheres atendidas, proporção de cesarianas e episiotomias, entre outros. Ainda assim, ao adentrarem uma maternidade, as mulheres são despojadas de sua individualidade e se veem obrigadas a cumprir todos os protocolos da instituição, sejam eles razoáveis ou não. Por exemplo, há uma lei federal que garante à mulher o direito a um acompanhante de sua escolha – mas essa lei pode não valer dentro do hospital, se este por acaso desejar que as parturientes permaneçam sozinhas durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto. Outro exemplo: a mulher recebe soro na veia logo que admitida na maternidade, mesmo que não haja qualquer necessidade, mesmo que ela não queira, mas apenas porque isso é protocolo da instituição. Numerosas situações poderiam ser citadas para ilustrar como o ambiente institucional é potencialmente violador dos direitos das mulheres.
Além da “tradição” de tutela da mulher e dos seus processos reprodutivos, os hospitais particulares ou mistos (que atendem pelo SUS e por meios particulares, como convênios e seguros) têm ainda outro fator a influenciar sua organização e seus protocolos: o dinheiro. Para essas instituições, por exemplo, é especialmente rentável ter o centro cirúrgico ocupado o dia inteiro por cesarianas agendadas, o que também impacta na ocupação da UTI neonatal. E quanto mais recém-nascidos internados na UTI, mais dinheiro a maternidade recebe.
E nós com isso?
Na prática, para as mulheres que vão dar à luz neste país gigantesco, nada muda com essa resolução do CFM. Os médicos vão continuar realizando cesarianas, inclusive as desnecessárias, independentemente das evidências científicas e da vontade da mulher, mas principalmente de acordo com as conveniências médicas. Estas incluem fatores financeiros e outros fatores como a organização da agenda profissional, a organização da agenda pessoal e principalmente a manutenção de um certo status social. Assim, por exemplo, todo médico tem dia para operar e dia para atender no consultório; agenda cesariana na sexta-feira pra garantir o almoço com a família no fim de semana ou a caipirinha no churrasco com os amigos. De acordo com essa organização, o profissional médico ocupa uma posição hierárquica superior, de modo que suas prioridades sejam “mais prioritárias” do que as de qualquer outra pessoa. A premissa de que a saúde da mulher e do bebê constitui objetivo primário da atuação do profissional de saúde simplesmente não se concretiza.
Essa é a mesma lógica que está por trás do projeto de lei (PL) que foi apresentado logo após a publicação da resolução do CFM. O PL diz: “Fica instituído o direito de pedido de cesariana à gestante ao completar no mínimo 37 semanas de gestação”. Apesar de haver diferenças nos resultados de saúde na comparação entre as cesarianas realizadas entre 37 e 39 semanas de gravidez, o parâmetro de tempo gestacional é o que temos de menos relevante nessa história. Pois tanto com 37 como com 39 semanas de gestação, essas cesarianas continuarão sendo realizadas a despeito das evidências científicas e da saúde da mulher e do bebê. Essas cesarianas continuarão sendo louvadas por profissionais de saúde e hospitais como tecnologias salvadoras de vidas, apesar de todos os resultados adversos que proporcionam. Essas cesarianas continuarão sendo colocadas como direito da mulher, apesar de ela não ter acesso a outra forma de dar à luz que seja respeitosa com seus direitos e suas individualidades. Essas cesarianas continuarão como estandarte da autonomia médica como valor preponderante na assistência, inclusive com a supressão dos direitos das mulheres e com a submissão da saúde de mulheres e bebês. Em última instância, essas cesarianas continuarão sendo realizadas como forma de manutenção de um poder e de uma hierarquia que têm em seu topo a categoria médica.

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