Social Icons

13 de julho de 2020

Quando a ética não faz parte do negócio: a pediatria e a Nestlé

Indústria de alimentos mantém sua estratégia de conquistar corações e mentes (e bolsos) de profissionais de saúde e famílias


Em plena pandemia de Covid-19, em meio a decisões governamentais pouquíssimo ou nada baseadas na ciência, não é de surpreender a notícia de que a Nestlé e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) se uniram para mais uma ação conjunta, conforme noticiado no site da própria SBP: "SBP e Nestlé lançam programa para capacitar residentes de pediatria em temas de nutrição infantil". Com o disfarce de incentivo à formação acadêmica e reforço na qualidade da atuação de futuros profissionais, essa parceria entre indústria e associação médica nada tem de inocente e benéfica para a sociedade. 

E o que há de mal em entregar para a indústria a formação de milhares de profissionais de saúde? Nesse caso específico, o Programa Jovens Pediatras (J.Pedia), "um curso digital de capacitação em nutrição", segundo o site da SBP, os residentes serão formados por quem tem (fortes) interesses econômicos envolvidos no que acontece dentro dos estabelecimentos de saúde, seja consultório, seja maternidade, seja posto de saúde. Estamos falando de médicos formados, futuros pediatras, que entre outras coisas darão orientações e prescrições para cuidadoras e cuidadores de crianças das mais diversas idades, desde o nascimento. Como se pode imaginar, a prescrição de fórmulas (leite em pó, sendo bem clara) será ainda mais banalizada, com um sem-número de indicações e supostas vantagens. Aconselhamento sobre aleitamento materno? Esqueça. Se hoje são raros os pediatras que realmente conseguem auxiliar uma pessoa com dificuldades em amamentar, daqui a alguns anos esses profissionais serão como cabeça de bacalhau. 

A Nestlé se intitula "a maior empresa mundial de alimentos e bebidas", o que não é pouca coisa, considerando seu mercado de atuação. Quando se fala de leite em pó para bebês (chamado de "substituto de leite materno", o que eu acho um equívoco, já que leite materno não tem substituto à altura), o valor de vendas no varejo no mundo foi estimado em US$70,6 bilhões em 2019. Isso mesmo, mais de 70 bilhões de dólares, cerca de 300 Itaquerões, um pouco mais, um pouco menos, dependendo de como se calcular o valor do estádio corintiano, que não foi exatamente uma pechincha. Guarde bem: 300 Itaquerões de lucro em um ano. Não satisfeitas, empresas como a Nestlé querem sempre ampliar seus lucros, mantendo investimentos e pessoal especialmente mobilizados com esse objetivo. Assim, está sempre direcionando recursos para promover seus produtos, tanto para as famílias quanto para profissionais e estabelecimentos de saúde e ainda gestores.

E por que é tão ruim promover a venda desse tipo de leite em pó? Porque leite em pó é pior para a saúde de bebês e genitoras, é pior para o meio ambiente e é pior para a economia. Quem mostra isso é um estudo abrangente e criterioso publicado em 2016 na prestigiosa revista científica Lancet, realizado pelo epidemiologista brasileiro Cesar Victora e por diversos outros colaboradores internacionais. Traduzindo livremente alguns dos principais achados desse estudo:
  • crianças que são amamentadas por períodos mais longos têm menos morbidade e mortalidade por infecção, menos má-oclusão dental e maior inteligência em comparação com as crianças amamentadas por períodos mais curtos ou não amamentadas. Essa desigualdade persiste até a vida adulta;
  • há crescente evidência de que o aleitamento materno protege de sobrepeso e diabetes na vida adulta;
  • pessoas que amamentam têm benefícios também, como prevenção de câncer de mama,  maior espaçamento entre partos e redução do risco de diabetes e câncer de ovário;
  • o aumento das taxas de amamentação poderia evitar 823 mil mortes de crianças e 20 mil mortes por câncer de mama todos os anos;
  • achados de estudos com modernas técnicas biológicas sugerem mecanismos que caracterizam o leite materno como um remédio personalizado para as crianças.
Outro estudo publicado na Lancet (publicado na mesma edição) indica ainda:
  • a amamentação prolongada está associada com o aumento do quociente de inteligência (QI), sendo que quanto mais tempo a criança é amamentada, maior o benefício;
  • considerando que QI mais alto está relacionado com melhores salários, os pesquisadores estimaram que a perda na renda nacional bruta nos países de renda baixa e média é da ordem de US$70,9 bilhões e, nos países de renda alta, de US$231,4 bilhões (0,53% de sua renda nacional);
  • considerando os efeitos protetivos da amamentação, um aumento de 10 pontos percentuais no aleitamento materno exclusivo até 6 meses e continuado até 1 ou 2 anos poderia reduzir o gasto com tratamento de doenças infecciosas em até US$1,8 milhão no Brasil;
  • ainda considerando os efeitos protetivos da amamentação, o aumento da taxa de amamentação para 90% reduziria os custos com o tratamento de determinadas doenças em US$6 milhões no Brasil; 
  • as estimativas usam como referência dólares de 2012 e os pesquisadores adotaram uma postura conservadora – ou seja, o impacto econômico pode ser ainda mais significativo!
O leite materno é um alimento natural e renovável, ambientalmente seguro e produzido e entregue ao consumidor sem poluição, embalagem e desperdício. Assim, o consumo de leite em pó em substituição ao aleitamento materno implica custos ambientais que não podem ser ignorados. Os pesquisadores lembram que o leite em pó deixa uma pegada ecológica – consome água e energia elétrica na sua fabricação, precisa de materiais para embalagem, requer uma cadeia de transporte e distribuição, etc. Estima-se que são necessários 4 mil litros de água para a produção de 1kg de leite em pó! 

Traduzindo isso tudo para o bom português, o leite materno é muito bom para a saúde tanto de quem amamenta quanto de quem é amamentado, além de ser bom para a economia do país e para a sustentabilidade do planeta, de maneira mais ampla. Mas a indústria lucra muito, mas muito dinheiro mesmo com a venda de leite em pó para bebês, assim, vai continuar usando das estratégias mais "criativas" possíveis (inclusive se antiéticas) para manter e ampliar seu mercado. 

No Brasil e em outros países há regulação para coibir esse tipo de atuação da indústria, tocando inclusive o patrocínio de profissionais e associações de classe. A Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de 1ª Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras é mais conhecida como NBCAL (leia "ene-bê-cal") e foi transformada em lei em 2006. No balanço dos poderes e da história, sabemos bem que juizes e médicos são os doutores da nossa sociedade. Assim... com a SBP se associando à maior das indústrias de alimentos, como fazer cumprir a NBCAL em sua plenitude? 

Apenas para confirmar o padrão de ação da indústria, experimente dar uma olhada nas propagandas e embalagens dos produtos lácteos voltados para bebês e crianças. São latas muito parecidas entre si, com a sempre presente mensagem de que seu conteúdo é saudável, feito para melhorar o crescimento, a imunidade, o desenvolvimento ou qualquer outra coisa da criança. De forma nada besta, é muito comum que a indústria "disfarce" seus produtos desnecessários e nocivos à saúde como cuidado. Mas ela vai ainda além, disfarçando de leite em pó produtos chamados de "compostos lácteos", que, além de não substituírem o leite materno (nem mesmo o leite em pó), são, na verdade, uma mistura de um monte de coisas desnecessárias para bebês e crianças – muito melhor que se alimentem com comida de verdade! As embalagens são muito, mas muito parecidas. 

É pegadinha ou não é?

É pegadinha ou não é?



(Parêntese para uma indignação extra: experimente dar um zoom na segunda imagem para ler a descrição do produto.)

"Ah, mas quem tem bebê sabe a diferença", alguém vai dizer. Não é bem assim. Mesmo mulheres escolarizadas e com padrão de vida suficientemente bom para alimentar suas crianças com esse tipo de produto têm dúvidas. Algumas delas, inclusive, expressam suas questões no site da indústria.


As respostas da indústria a toda sorte de dúvidas postadas no site não leva a outro lugar, senão ao início deste post. 



Pois bem. O pediatra indicou o produto, mas a consumidora tem dúvidas sobre sua adequação, então consulta a indústria, e a indústria manda a consumidora consultar... o pediatra! Ele teria as informações necessárias para prescrever o melhor produto e ainda esclarecer possíveis dúvidas. Mas é claro, pois a própria indústria o treinou, inclusive promovendo a confusão entre leite em pó e composto lácteo. Outra consumidora comprova:


Basta fazer as contas – e a preocupação aqui não é com a quantidade de produto por lata. A bebê nasceu bem antes do tempo (prematura extrema) e aos 9 meses de vida começou a tomar um composto "indicado" para crianças "pré-escolares", com idade entre 3 e 5 anos, o que, aliás, só é possível descobrir seguindo um link bem escondido e em inglês. 

Enfim, nem com muita fé e inocência é possível acreditar que essa indústria tenha boas intenções quando se trata de produção e comercialização de alimentos e bebidas para bebês e crianças. Além disso, algumas perguntas permanecem. Por que os preceptores de residência em pediatria indicaram residentes para o curso online dessa indústria? Por que os residentes toparam fazer um curso desses? Por que a Sociedade Brasileira de Pediatria mantém relação tão estreita com a empresa Nestlé? E, mais importante, onde estão os órgãos de defesa da cidadania? É o futuro de um país ameaçado, tirando o benefício do aleitamento materno de milhões de bebês, colocando em risco sua saúde presente e futura, sobrecarregando o sistema de saúde. Em tempos de Covid-19, o debate não poderia ser mais atual.

Referências
ALIANÇA pela alimentação adequada e saudável. Organizações denunciam conflito de interesse em curso da Nestlé para médicos residentes de pediatria. Disponível em: <https://alimentacaosaudavel.org.br/blog/organizacoes-denunciam-conflito-de-interesse-em-curso-da-nestle-para-medicos-residentes-de-pediatria/8180/>.
BRASIL. Lei nº 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11265.htm>.
IBFAN. Nota de repúdio: a IBFAN Brasil repudia parceria da Nestlé com a SBP em programa para jovens pediatras. Belo Horizonte: IBFAN, 2020. Disponível em: <http://www.ibfan.org.br/site/noticias/nota-de-repudio-a-ibfan-repudia-parceria-da-nestle-com-a-sbp-em-programa-para-jovens-pediatras.html>.
SBP. SBP e Nestlé lançam programa para capacitar residentes de pediatria em temas de nutrição infantil. Rio de Janeiro: SBP, 2020. Disponível em: < https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-e-nestle-lancam-programa-para-capacitar-residentes-de-pediatria-em-temas-de-nutricao-infantil/>.
THE LANCET. Breastfeeding series. Disponível em: <https://www.thelancet.com/series/breastfeeding>.


Nenhum comentário:

 

Apoio

Aqui você encontra material sobre evidências e boas práticas relativas à saúde e ao bem-estar da dupla mãe-bebê. Fique à vontade e entre em contato, adoramos uma boa conversa! Envie um e-mail para grupomaternamente@gmail.com ou entre no grupo do Facebook.

Território

Atuamos principalmente em Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (o ABC paulista), mas também na capital paulista e em outros municípios do Estado de São Paulo.

Articulação

Procuramos nos articular com outros movimentos sociais e com as instâncias gestoras, com o fim primordial de defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e de instaurar um novo paradigma de assistência à saúde da mulher.