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17 de maio de 2011

Relato do parto do Davi - por Aline

“Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes? Respondeu Jesus: Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. (...) O servo, então, prostrou-se por terra diante dele e suplicava-lhe: Dá-me um prazo (...)!” (Mt 18, 21-22, 26).

Ao ouvir estas palavras no Evangelho dia dos pais de 2007, as lágrimas rolaram no meu rosto. Eu também suplicava: “Senhor, dá-me um prazo!”. Passei a maior parte da missa sentada. Usava um casaco do Rodrigo, estava 18 quilos mais pesada, sensível, cansada, às 40 semanas e quatro dias da gestação do Davi.
Algumas pessoas haviam me dito que no dia do parto acordaram cheias de energia, fizeram faxina, lavaram cortinas. Mas eu acordava a cada dia me sentindo menos enérgica, mais cansada e mais pressionada. Os telefonemas me irritavam, as perguntas do tipo: “mas ainda não nasceu?” me ofendiam, me sentia de certa forma incompetente por ainda não ter parido.
Queria ficar no colo do meu marido, com meu filho no meu colo interno, e que o mundo se resumisse a isso até o trabalho de parto começar. Mas era dia dos pais, eu não tive coragem de assumir que queria um ninho particular e fui encontrar as pessoas, ouvir educadamente as perguntas e os comentários. E suportar a frustração por não ter, ainda, neste dia, parido um filho para o pai e um neto para os avós. Achava que os desejos de uma mãe não podiam ficar em primeiro lugar em pleno dia dos pais.
O Rodrigo entraria de férias dali a oito dias e tínhamos imaginado que o ideal seria que o Davi nascesse logo no início desta semana, para os cinco dias de licença paternidade serem justapostos às férias. Mas eu não sentia nada que indicasse que o Davi chegaria logo, não sentia nada além de um desamparo, porque se tudo continuasse assim, no dia seguinte o Rodrigo iria trabalhar e eu ficaria sozinha.
Passamos o almoço e parte da tarde fora, voltamos para casa à noitinha.Tomei banho, cochilei no sofá, onde o Digo assistia televisão, acordei perto das 22:30h. e fui ao banheiro. Senti uma umidade estranha. Não consegui parar mais quieta, ia ao banheiro a cada pouco. Coloquei um absorvente, depois achei que estava me atrapalhando, porque queria saber se existia ou não um líquido novo. Era incolor, mas a quantidade era tão pequena que ficava difícil para mim reconhecer o cheiro. O Rodrigo estava muito mais confuso do que eu.
Meu obstetra havia falado que, pelo tamanho da barriga e pela quantidade estimada de líquido amniótico, minha bolsa estouraria de uma vez só e seria muito evidente que isso teria acontecido. Mas a situação real não foi nem um pouco evidente. Fiquei sentada num banquinho bem baixo, como fizera tantas vezes nas últimas semanas, enquanto tentava descobrir com o Rodrigo o que estava acontecendo.
Resolvemos ligar para minha médica homeopata, que acompanhou todas as condutas da gestação, e que era a primeira profissional a quem eu recorria (embora ela já houvesse trabalhado com parto humanizado por algum tempo, não mais assistia partos). Eu estava envergonhada por telefonar, não queria incomodar “à toa”. Ela disse que é muito comum o trabalho de parto (TP) começar naquele horário e que deveríamos observar a frequência das contrações, sem pressa, e se necessário ligar para ela novamente.
Há alguns dias a barriga estava muito pesada e as contrações de Braxton Hicks eram bem mais incômodas. Mas não reconheci nitidamente os pródromos.
Deitei e pedi que o Rodrigo também deitasse, para podermos descansar caso tivéssemos que levantar à noite. Coloquei uma toalha de banho na cama, deixei o abajur aceso, agenda, caneta e relógio ao lado. A cada pouco (aproximadamente a cada dez ou oito minutos) sentia uma contração nitidamente nova, diferente das que vinham ocorrendo nos últimos tempos. Doía. Tendo em mente que deveria tentar dormir entre as contrações, fiquei deitada praticamente todo o tempo – até fiquei de quatro na cama algumas vezes, conforme tinha aprendido que seria melhor, mas o frio de uma madrugada de agosto, todo o meu peso e as dores corporais de um final de gestação me desestimulavam. Eu realmente não acreditava, não sabia que diferença a posição poderia ter feito.
Dormi entre as 00:22h. e as 0:45h., quando acordei com uma forte contração. Fui ao banheiro. Diferente do que tinha ouvido de muitas mulheres, meu intestino não funcionou, eu só fazia xixi, mas parecia me dar um grande alívio. Começou a aparecer um pouquinho de sangue quando me limpava, no banheiro.
Não consegui mais dormir. Fui ao escritório pegar um livro, um livreto e uma apostila, abri nas páginas que indicavam como detectar o TP e que atitudes tomar. Fiquei sentada na cama, anotando as contrações, observações (“movimentos do bebê diminuíram”, “sangue”, “dor nas costas do lado esquerdo”) e relendo o material, como se no dia seguinte tivesse uma prova importante. E realmente tinha, no fundo era assim que eu encarava.
Anos depois uma amiga comentou sobre essa minha “fantasia de controle”, a tentativa de controlar o incontrolável.
Em algum momento o Rodrigo acordou e disse “tudo bem? Descansa, viu?”. Eu não respondi, só olhei pra ele, contente com seu cuidado, mas achando as duas colocações descabidas: como assim, tudo bem? E como assim, descansa?
O Rodrigo dormindo ao meu lado, eu entre preocupada em não acordá-lo e torcendo para ele me fazer companhia – ou, principalmente, tomar atitudes por mim. Por voltas das 2:00h., acordei-o e disse que queria ligar para a médica. As contrações estavam com intervalos entre sete e dez minutos e durando por volta de trinta segundos. Ele titubeou em pegar o telefone, será que estava esperando que eu fosse até a sala e pegasse? E se estivesse, porque não? Porque será que eu não andava, ficava ali sentada na cama, plantada? Ele foi pegar o telefone, deitou novamente. Eu acho que eu queria que ele falasse com a médica, mas não cheguei a pedir. Não tive mais a vergonha de telefonar para a casa dela de madrugada, agora eu sabia que era “sério”. Quando desliguei o telefone ele já estava dormindo, mas semiacordou e perguntou: “amanhã eu não vou trabalhar?”, eu ri da pergunta e ele justificou “eu preciso saber por causa da roupa!”. Ri mais ainda e até anotei essa fala na agenda, ao lado das contrações.
Minha médica orientou que eu descansasse e saísse para o hospital em duas horas, depois de comer algo leve e tomar um banho. Também disse para eu não comentar sobre a perda de líquido, o que me deixou um pouco tensa – eu sabia que informar sobre a bolsa rota poderia levar a procedimentos desnecessários e me transformar mais ainda numa bomba relógio, mas tenho a maior dificuldade em disfarçar uma mentira (o que ficou muito mais difícil ainda quando estive em trabalho de parto).
Parei de anotar as contrações, isso foi libertador, mas foi um pouco angustiante ficar apenas esperando, eu ficava lembrando se faltava alguma coisa nas malas, verificando, tentava ficar deitada, mas a cada vez as contrações doíam mais.
Às 3:30h. resolvi ir tomar banho. Tive três contrações durante os poucos minutos em que fiquei no chuveiro e me assustei, comecei a me apressar. Poderia ter aproveitado para lavar o cabelo, mal sabia eu o quanto isso ia demorar e me fazer falta, mas não cheguei nem perto de aproveitar os benefícios de uma ducha quente, que pena...
O Rodrigo acordou quando comecei o banho e perguntou o que eu estava fazendo, sem entender nada. Eu não tinha dito a ele sobre a orientação da médica, não lembro bem ao certo o motivo, mas acho que eram dois: era muito difícil falar sentindo as dores e ele estava querendo dormir.
Ele foi colocar algumas coisas na mala, eu me vesti, fui tomar chá com torradas, não sabia se podia passar manteiga, nem o quanto podia comer. Não comi por fome, mas porque fui orientada a isso. Mas foi bom, porque não me lembro de ter sentido fome no restante do TP.
Andando pela casa, tomando o elevador, andando na garagem, as contrações eram mais freqüentes e fortíssimas. Eu abaixava o tronco, o Rodrigo massageava a região lombar, não sei dizer se essas atitudes melhoravam a dor, o que mais me incomodava era imaginar como seria sofrido andar de carro desse jeito.
Tinha separado um CD de músicas de ninar para escutar no carro, no caminho para a maternidade. Mas não quis ouvir nada, fomos em silêncio. As contrações simplesmente pararam: nosso percurso começou pouco depois das 4:00h. e chegamos ao hospital por volta das 5:00h., ainda escuro. Nesse período, ocorreram apenas duas contrações. Fiquei entre aflita e frustrada, não queria que fosse um alarme falso e tivéssemos que voltar para casa e esperar tudo acontecer de novo, eu queria que o Davi nascesse! No final do percurso conversávamos sobre as pessoas que andavam na rua, e até chegamos a rir pensando no que diríamos ao chegar lá no hospital, sem sinal de TP.
Mas ao primeiro movimento para descer do carro uma contração fortíssima me travou. Fui andando curvada, um segurança simpático me ofereceu uma cadeira de rodas, mas fiquei indignada pensando “ele não sabe que é bom andar?” e apavorada pensando na dor que sentiria ao sentar.
Chegamos ao balcão de admissão, fiquei ao lado do Rodrigo naquele demorado processo de preenchimento de fichas, apoiada no balcão. A cada contração eu me abaixava e ele massageava minhas costas. As recepcionistas perguntavam se eu já estava sentindo contrações – quanta sensibilidade! Me “convidaram” várias vezes a ir sentar, até que em certo momento, quando o Rodrigo me pediu, vencido pela insistência delas, eu fui. Sentada era mais dolorido e mais solitário.
Se não me engano tive que ir de cadeira de rodas para a sala de exames, era norma do hospital. Uma enfermeira com a qual simpatizei fez muitas perguntas, eu não sabia o que tinha que responder, estava insegura até sobre a idade gestacional (40 semanas e 5 dias), não tinha idéia clara sobre qual momento do TP estava, tinha que omitir a questão do líquido, mas estava muitíssimo controlada. O Rodrigo demorou bastante para chegar lá.
Fui ao banheiro tirar a roupa a pedidos da enfermeira. Lá, vi que continuava saindo um pouco de líquido. Voltei, deitei na maca para fazer o cardiotoco, a enfermeira pediu que eu apertasse o botão quando as contrações começavam e terminavam. Parecia uma pêra de audiometria, o que me remeteu a tantas coisas (sou fonoaudióloga), me senti testada, avaliada pelo meu desempenho, não consegui fazer isso direito, mas ela disse que estava dando para perceber bem as contrações pelo traçado.
Ela fez o exame de toque, ficou com uma expressão satisfeita e me disse “está com sete centímetros!”, quase me dando os parabéns. Fiquei emocionada e aliviada.
A enfermeira telefonou para o meu médico, eu fiquei com a sensação de “mas já? será que não é muito cedo para ele vir?”. Conforme escutava ela me descrever fiquei com a sensação de “não é bem assim...”. Tentei completar algumas respostas que tinha dado, mas, enquanto esteve ao telefone ela não me deu atenção.
Chegou uma outra enfermeira, superior a essa, mais séria, muito menos simpática e disse alguma coisa para a colega sobre “falsas contrações” mostrando o traçado do cardiotoco. Fiquei irritada. Em seguida vi que o Rodrigo estava lá, atrás de um tapume bege, comecei a chorar, queria que ele viesse segurar minha mão, mas atrapalhava um pouco a circulação das enfermeiras, queria falar com ele a sós, ficava sussurrando, contando o que tinha acontecido, entre dores fortes, e ele não entendia direito.
Fui ao banheiro vestir o avental para subir para a suíte de parto normal (LDR). Houve uma preocupação prática, um medo de perder minhas coisas, esquecer alguma peça de roupa por lá, algo que não queria que passasse pela minha cabeça nesta hora.
Tinha conhecido duas enfermeiras obstetrizes daquela maternidade e torcia para que fosse um desses o rosto a me receber. Tive uma contração muito forte na hora em que destrancaram a porta de acesso a essa parte em que ficava a LDR e não conseguia/queria andar. A pessoa que me acompanhava me “forçou” a continuar andando e entrar. Um rosto desconhecido, mas simpático, me recebeu, me senti bem, como se dali para a frente os profissionais saberiam o que fazer de acordo com o que era exposto no curso de gestantes da maternidade – mas estava enganada...
Logo houve a troca de plantão e a enfermeira obstetriz que chegou não me inspirou a mesma empatia que a anterior, aliás, não fez nenhum vínculo comigo, talvez tenha dito seu nome, mas apenas formalmente. Muitas auxiliares de enfermagem passavam pela sala, me incomodava a inconstância de rostos desconhecidos, eu não sabia quem era quem, o que estavam fazendo ali...
O Rodrigo apareceu todo vestido de azul, me ajudou a colocar nossas coisas num cantinho. Lembramos da máquina fotográfica, não lembrávamos onde estava, levamos uma bronca porque não podíamos ficar saindo de lá para pegar nada...
Me pediram para deitar na maca e fizeram um procedimento abominável de assepsia com clorexidina aquosa. Senti um ardor horrível, uma vontade muito forte de urinar, talvez tenha sido o maior incômodo de todo o trabalho de parto, porque o efeito perdurou até não sei que momento. (Nunca foi bem esclarecido porque isso aconteceu, porque mais tarde quando comentei com o médico ele me disse apenas: “não, clorexidina aquosa não arde”, resposta esta que me deixou indignada, porque eu sei o que senti. Futuramente uma profissional da área levantou a hipótese de ter ocorrido engano quanto à substância, e ter sido administrada clorexidina alcoólica, esta sim arderia muito).
Pedi para ir ao banheiro, foi a última vez antes do parto que pude fazer isso sem aquele cabide todo do acesso venoso junto. Fazendo xixi parecia melhorar um pouco o ardor, mas assim que parava, voltava a arder muito. Queria ficar sentada ali. Queria que o Rodrigo ficasse por perto, mas tinha gente entrando e saindo, não sei o que tanto tinha que ser feito por lá. Em certo momento uma auxiliar de enfermagem, já senhora, me disse que eu não podia ficar ali que deveria ir me deitar. Perguntei se eu não iria poder me movimentar, ela disse que sim, mas depois.
Tinha uma banheira e um chuveiro bem à minha frente, mas não foram usados; a explicação também não ficou muito clara, acho que disseram que no meu caso atrapalharia o andamento do TP. Hoje penso que simplesmente poderia fazer tudo demorar mais para as agendas dos profissionais – mas eu, o Rodrigo e o Davi não tínhamos horário marcado para nada...
Tive que voltar para a maca, instalaram soro, cardiotoco, talvez mais alguma coisa que eu não lembro. A enfermeira obstetriz pouco simpática fez o exame de toque e disse que a dilatação estava em cinco centímetros. Arregalei meus olhos.
Meu médico chegou, foi bom vê-lo, me senti segura. Repetiu o exame, chegando à mesma conclusão sobre a dilatação. Fizeram caras e comentários sobre a inexperiência da pessoa que fizera o primeiro toque. Por muito tempo essa situação me incomodou. Anos depois li uma entrevista com a parteira Ina May, sobre a progressão do trabalho de parto, que finalmente me satisfez**.
Perguntei alguma coisa para o médico e ele tentou tranquilizar-me, dizendo que estava evoluindo bem.
Ele entrava e saía do quarto. Foi bom porque finalmente pude ficar um pouco a sós com o Rodrigo. Ele sentado na escadinha ao lado da cama, segurando minha mão esquerda. A cada contração eu apertava muito a mão dele. Nos intervalos, rezávamos. Eu pedia para ele rezar baixinho quando eu não conseguia falar. Muitas vezes fizemos uma ladainha, eu evocava o santo e ele dizia “rogai por nós!”. Lembrei de tantos santos, naquela época eles ficaram tão íntimos a mim! Desde o começo da gestação eu tinha uma angústia ao anoitecer e aproveitava para encerrar as atividades do dia e descansar acompanhando a reza do terço pela televisão. Fui de uma fidelidade afetiva durante os meses, aquele momento me confortava e alimentava, era como se eu e o Davi estivéssemos finalmente no lugar certo. Essa intimidade com a oração foi um dos pontos altos da gravidez e nos acompanhou no momento de certa forma cheio de estranheza que estava sendo o parto.
O médico sentou em seu banquinho “bem localizado”, diante do túnel por onde meu bebê passaria, naquela inesquecível, submissa e desconfortável posição de litotomia, e, depois de me informar o que faria, estourou a bolsa com um instrumento muito semelhante a uma longa agulha de crochê. Teve que fazer força e tentou umas três vezes, todas muito doloridas. A bolsa explodiu, como ele dissera que ocorreria se estourasse espontaneamente. Eu não sabia que uma rotura alta, como aquela com que eu estava, por estar perdendo líquido em pequena quantidade, permitiria que a bolsa se mantivesse tão resistente. Doeu muitíssimo, uma dor profunda, somada ao desconforto do ardor preexistente. Sentir a água quente saindo foi uma pitada de conforto.
Tantas vezes durante o pré-natal eu tinha falado com meu médico sobre meus “desejos” (sem ocitocina, sem episiotomia, anestesia apenas se e quando eu pedisse) e ele respondeu que só faria se realmente necessário. Sem que ele introduzisse o assunto, vi que algo estava sendo colocado no soro e perguntei a ele, ele respondeu “ocitócito, só um pouquinho”.
A partir daí as contrações foram ficando terríveis. Uma se sobrepunha à outra. Eu apertava a mão do Rodrigo com muita força, sei que ele queria dividir aquela dor comigo se fosse possível. Tentava respirar da forma como tinha aprendido no curso de gestantes, mas estava muito cansada, aflita, não via efeito. Durante um desses episódios de respiração “desesperada” o médico entrou e disse que eu deveria parar de respirar assim, que não ia adiantar e eu ficaria com dor de garganta. Minha garganta estava mesmo muito seca. Seria tão melhor se ele tivesse me oferecido água e feito alguma sugestão delicada quanto à respiração – que, por mais que estivesse inadequada e ineficaz, era meu único instrumento para enfrentar, em decúbito dorsal, as dores da ocitocina sintética.
Ele chamou o Rodrigo para fora da sala. Na hora achei que ele estivesse querendo “salvar” o Rodrigo, porque ele estava sofrendo junto comigo. Fiquei um pouco confusa, pensando se o meu marido estava pior do que eu, o que não parecia, mas acabei achando que não podia ser egoísta e querer prendê-lo ali se não estava fazendo bem para ele. Não soube naquele momento o que aconteceu, mas depois de alguns dias, quando o Rodrigo me contou, achei uma estratégia covarde do médico: o médico mostrou a ele os gráficos indicativos dos picos de contração das três mulheres que estavam em trabalho de parto ali no momento. Uma delas passava por seu terceiro parto normal, seus picos tinham amplitude três vezes maior que a dos meus e, segundo o médico, ela estava muito serena. Disse isso para convencer o Rodrigo de que meu limiar de dor era baixo e que a anestesia me beneficiaria muito.
Quando o Rodrigo voltou, me senti muito melhor. Era muito difícil ficar sozinha, me faltava o ar. As contrações chegavam a se sobrepor. Eu perguntei o que aconteceu lá fora e ele disse que o médico tinha mostrado um papel que marcava as minhas dores. Disse que estava impressionado como eu estava suportando, que eu era muito forte, que tinha orgulho de mim.
O médico veio conversar comigo e disse que chamaria o anestesista porque eu estava sentindo muita dor e a anestesia iria facilitar o parto. Não me opus. (Mas eu tinha deixado tão claro que queria anestesia se eu pedisse! Por algum motivo ainda achava que não estava no meu limite. E quem poderia saber disso melhor do que eu?!)
Enquanto esperávamos pelo anestesista comecei a sentir os puxos – que na hora não sabia o que eram. Via minha barriga descendo em trancos conforme a dor apertava extraordinariamente, eu expirava involuntariamente quando isto acontecia.
O anestesista era de uma presença confortante, de um olhar humano. Ficamos apenas os dois médicos e eu na LDR durante a aplicação da analgesia combinada. Sentei na maca com a ajuda do meu médico. Ficar na posição adequada para a colocação do cateter (o médico segurando meus ombros e todo o peso das minhas costas solto no topo da cabeça, que eu apoiava nele) foi confortante, me senti acolhida.
Quando, deitada novamente na cama, senti a analgesia pegar, fiquei muito mais descontraída. Lembro de ter dito, com um tom bem humorado, que há meses eu não sentia minhas pernas relaxadas. Eu tinha sensação um pouco reduzida, mas presente, tinha pouca força para movimentação, mas não sentia absolutamente nenhuma dor: nem das contrações, nem do cansaço muscular, nem as dores posturais do final da gravidez, das quais já estava até enjoada. Foi um grande alívio.
O Rodrigo voltou. Foi orientado a ficar do meu lado direito, não dava mais para segurar bem a mão dele porque meu braço direito estava preso no soro. Ele tocava na minha cabeça e no meu rosto.
A cada pouco levavam para o banheiro uma pazinha com o “número dois”, como meu médico discretamente se referia ao que eu vinha eliminando já há algum tempo – em grande quantidade. No começo fiquei encabulada, realmente não conseguia perceber se/quando estava acontecendo, perguntava para o Rodrigo, como que querendo que ele negasse, mas ele só me dizia “não se preocupa com isso”.
O médico me pediu para fazer uma força. Instruiu-me a segurar nas barras da cama, falou em “força do remador”, disse alguma coisa sobre a respiração. Nada disso me era familiar. Eu estava muito preparada para fazer força do jeito que eu tinha aprendido no curso de gestantes, fiquei um pouco frustrada em ter que fazer diferente, comentei alguma coisa como “mas não é assim que eu sei” e ele foi condescendente: “então faz como você sabe”. Eu fiz. Dei tudo de mim. Aproveitei as tais barras, de improviso, e fiz a maior força do mundo com os braços, somada à força necessária, no abdome, que eu treinara tão bem. A expressão do médico se iluminou. Ele elogiou, animado, “aêee!”.
Até este momento o Davi não havia encaixado. Estava cefálico, dorso à esquerda, há muitas semanas, mas alto. Mesmo com a progressão do TP, ele permanecia alto. Vê-lo encaixando durante a contração, com a força que fiz, deve ter sido uma surpresa para o médico, que em algum momento deixou escapar “eu não pensei que ele fosse descer assim”.
Nesta hora me passou pela cabeça a ameaça da cesárea, como um flash, e a dúvida ameaçadora, “será que agora ele não vai mais pensar nisso?”.
Fiz algumas outras forças médias (o médico orientando que não precisava ser das maiores), a sala foi enchendo de gente novamente, o médico disse “tô fazendo a episio“. Procurei não me deter muito neste aspecto, porque tinha algo imenso acontecendo, meu filho ia nascer, porém me senti traída na hora – e hoje me sinto muito mais!
Então, com toda aquela plateia, o médico ia orientando as forças e eu fazendo a minha parte com todo empenho, dedicação e superação. Algumas enfermeiras que eu não sei de onde surgiram faziam coro dizendo “agora pára”, “agora vai, força, força, agora não pode parar!”. Achei aquilo minimamente indelicado e me deu um milésimo de segundo de raiva “quem disse que eu vou parar?”. Quem estava mais interessada em que meu filho nascesse?! Eu, suponho! Mas obedeci e fiz uma força muito comprida, provavelmente contra a minha natureza caso eu estivesse sentindo as contrações e os puxos.
O Davi apontou com o cotovelinho direito ao lado da cabeça (posição em que, por muitos meses depois de nascido ele adorou dormir), o médico deteve o cotovelinho (disse: “por isso que não descia!”) e a cabecinha nasceu, e depois, em outra força, o corpinho. Não senti ao certo quando ele “terminou” de nascer. Estranho, todos ali sabiam exatamente o que estava acontecendo, menos eu. O médico disse “meninão lindo!”. Ouvimos seu choro, forte, porém breve, o que fez com que, na metade do caminho até mim, a pediatra o requisitasse de volta...
Eu chorava e ria, alto, soluçava aliviada. Perguntei “tá tudo bem? Tá tudo bem com ele?” Vezes consecutivas. Pareciam não ter me ouvido, ou estavam esperando ter uma resposta para me dar... Comecei a agradecer, naquela hora agradecia ao médico, à equipe, mesmo.
O Digo disse, com os olhos cheios d’água, assim que o viu “é a sua cara, Lila”. Eu olhei e disse, chorando, “é mesmo!”. Era uma evidência, não tinha o que contestar.
O médico disse o horário do nascimento, 9:37h. Os profissionais chutaram o peso, acertou quem se aproximou mais de 3,775 Kg.
A pediatra “alugou” nosso bebê por alguns instantes, o Rodrigo e outros expectadores profissionais desconhecidos vendo tudo. Depois de entregar o Davi para as auxiliares enrolarem-no e colocarem a touquinha da maternidade, ela veio me dar os parabéns, dizer que estava tudo bem com ele, que “só o chorinho demorou um pouquinho pra engatar, por isso eu peguei ele de volta”. Sinceramente não sei por quais procedimentos o Davi passou. Sei que recebeu vitamina K injetável, colírio nitrato de prata. Talvez o Rodrigo se lembre se foi aspirado, esfregado.
Logo a placenta saiu, o médico me avisou. Não me lembro de ter feito força para isso, acho que ele tracionou. Pedi, “posso ver?”. Repeti o pedido. Tenho praticamente certeza de que ele ouviu. Mas não respondeu nada, nem olhou para mim. Senti uma estranheza. Aquela placenta não era minha e de meu bebê? O médico comentou, para os colegas, que estava íntegra.
Começou a suturar a episio sem dizer nada. No meio do meu riso-choro apareciam uns “ai”s, e quando ele reconheceu que eram de dor, me perguntou se eu sabia o que ele estava fazendo. Respondi que sim – sabia nitidamente. Ele avisou o anestesista e continuou a sutura apenas depois do ajuste da anestesia.
Antes de ir embora me deu os parabéns, me deu um beijo, disse que eu sou “uma parideira de verdade” (me ocorre que até então ele não confiava nisso) e cumprimentou o Rodrigo. Eu estava verdadeiramente agradecida. (Naquele momento, e até um ano e meio depois, quase tudo o que aconteceu me parecia normal, como tinha que ser. E mesmo hoje, com um conhecimento tão maior, uma mentalidade tão diferente, e tão mais empoderada do que neste dia, tenho muito afeto por este médico, que faz com muita seriedade e em grande parte com carinho, aquilo que acredita que deve fazer).
Por volta das 10:30h. começamos a avisar nossos familiares e amigos. Entramos num consenso sobre quem avisar primeiro. Liguei para minha mãe, deu sinal de ocupado umas duas vezes. Enquanto isso ela estava tentando me achar no celular, porque ninguém atendia ao telefone na nossa casa. Continuei insistindo (quando consegui, ela achou que eu estivesse retornando a ligação dela, e meses depois me perguntou quando é que eu pretendia avisar se ela não tivesse me ligado...). Ela atendeu, perguntou onde eu estava, engoli o choro e respondi “na Pró-Matre”, e eu logo disse: “estou olhando para o bebê mais lindo do mundo no colo do homem mais lindo do mundo”.
Depois o Rodrigo ligou para os pais dele, em seguida eu liguei para o meu pai, e fomos fazendo, um a um, os telefonemas importantes para nós. É comovente lembrar de cada um deles.
Meu marido estava mais lindo do que nunca, comovido, inteiro, mudado, agora ele era pai - os olhos molhados assim como os do Davi, irritados pelo colírio. Ficou sentado na poltrona com o Davi embrulhadinho no colo por mais de uma hora. Olhava para ele, sem fim. Falava baixinho com ele. Foi aí que começou a intimidade deles dois.
Eu estava um pouco zonza, além de limitada, por conta da posição deitada e do acesso do soro. Consegui segurar meu filhote um pouquinho, com um braço só, como se fosse uma baguete recheada – recheada de amor. O Digo bem observou que o Davi estava chorando bastante quando foi inicialmente entregue a nós, e que parou imediatamente ao ser colocado diante do meu rosto.
Em certo momento eu disse a uma auxiliar “eu queria dar de mamar” e ela “calma, daqui a pouquinho cê dá”. Achei que, como parte do protocolo, alguém viria justamente para isso em algum momento. Não aconteceu. Já mais de uma hora depois do nascimento, quando me ocorreu de tentar amamentá-lo, percebi que elevando a cabeça ficava com muita náusea. Chamamos uma auxiliar, que colocou uns paninhos no meu ombro, caso eu vomitasse, e nos ajudou a elevar a cama aos poucos. Demorou um pouco para a tontura melhorar, até dormi alguns minutos enquanto esperava.
Quando colocamos o Davi para mamar, ele lambeu e babou no meu peito. Deu umas sugadinhas. Graças à ideia de uma auxiliar nova que apareceu por lá, temos um videozinho desse momento. Pela empolgação dela, não devia ser algo comum de ocorrer.
O lado bom da história é que fomos esquecidos por algumas horas. Depois das 13:00h., uma auxiliar entrou nos perguntando a que horas o bebê tinha nascido, levou um susto com a resposta, disse: “não, ele não pode ficar aqui, tem que ir para a observação!” E alguém poderia observá-lo mais atentamente que seus próprios pais?
Fomos para o quarto e depois das 17:00h. o Davi chegou. Uma auxiliar me ajudou no banho, fiquei feliz porque poderia finalmente lavar meu cabelo, mas ela disse que seria melhor um banho rápido, e eu, muito frustrada, “obedeci”. Recebemos muitas visitas, algumas muito íntimas e esperadas, algumas surpresas, algumas nem conhecia e nunca mais vi. Ficamos por lá um dia a mais do que o previsto, porque o Davi teve icterícia e precisou ficar um dia em fototerapia. Esta terceira noite foi a única em que ele ficou no quarto permanentemente. Não entendo bem porque, nas duas noites anteriores ele ficou no berçário – fui convencida de que estava muito cansada e que seria melhor assim. Mas eu sempre quis alojamento conjunto, não sei como me rendi a mais essa concessão. Estava mesmo muito cansada, sentia meu corpo muito dolorido, “atropelado”. Era acordada pela equipe infinitas vezes, era acordada pelo telefone quando finalmente conseguia dormir... Sentia uma fome incrível. Na véspera da alta, quando meu médico fez a última visita (e me informou que não iríamos embora por conta da fototerapia) fiquei muito contrariada, triste, à beira das lágrimas. Ele percebeu o impacto que isso teve em mim e, ao sair do quarto, deu um passo para trás novamente e me disse “por favor, não fica preocupada que as coisas que acontecem com ele sejam culpa sua. Você já é uma mãezona, você já está fazendo um ótimo trabalho”. Boa parte da “lista de reclamações” que se seguiria desde o nascimento até o momento da alta tem mesmo relação com essa sensação de frustração, talvez de impotência/submissão que foi a experiência da estada na maternidade (dois exemplos: 1- o Davi ter recebido complemento alimentar – inicialmente água fervida, depois fórmula, mesmo contra minha vontade, oferecido no copinho com técnica muito inadequada; 2- a lembrança da maternidade ter vindo escrito “cesárea”, o que ilustra o que era “normal” ali). Mas prefiro ressaltar dois bons momentos: (1) nessa diária “extra” que tivemos, pudemos ficar ali apenas em família, nós três, já que as visitas todas achavam que tínhamos ido embora (apesar do nítido baby blues que se instalou em mim naquele dia). (2) A última noite foi exaustiva, o Davi não saía do peito, só chorava no bercinho, as enfermeiras me pressionavam a deixá-lo ali por conta das horas de exposição à luz. Eu sentia muita cólica ao amamentar, além da dor muscular no corpo e da dor nos mamilos. Lembro que às 3:00h. ele dormiu de bruços no meu colo, eu fiz o maior malabarismo possível para colocá-lo no bercinho naquela posição sem que ele acordasse (era a quinta tentativa) e ele ficou. Então, quando o Rodrigo dormia no sofá do acompanhante e o Davi no bercinho, senti uma alegria tão grande, uma verdadeira realização, meus dois meninos dormindo tranqüilos. Eu ouvia vozes e estava tonta, como quando ficava até de madrugada terminando um trabalho da faculdade, mas fiquei olhando para eles e agradecendo a Deus, até chorei. Dormi das 3:00 h. às 6:00h., quando vieram pegar o Davi para os exames no berçário.
Finalmente tivemos alta, voltamos para casa ouvindo o CD de canções de ninar que eu havia separado, eu no banco de trás ao lado do Davi, que dormiu o tempo todo na cadeirinha. Foi um percurso muito emocionante. Olhava para o Rodrigo pelo retrovisor, tão lindo, uma beleza que eu nunca tinha visto, ele era outro, estávamos muito mais unidos. Rezamos muito no caminho, a mesma ladainha que fizemos nos momentos mais duros do parto. Chegamos em casa e eu me ajoelhei em frente às imagens de Nossa Senhora da Doce Espera, Nossa Senhora do Bom Parto e de Santo Antonio de Santanna Galvão, acendi o Sírio Pascal e fiquei rezando e chorando. Enquanto isso o Rodrigo levou nosso Davi no colo, passeando pela casa, apresentando a ele todos os cômodos, com o maior carinho do mundo, até deixá-lo dormindo em seu quarto.
Não é à toa que só consigo encerrar este relato descrevendo nosso retorno à nossa casa; hoje sei que não precisávamos ter saído daqui para ter nosso filho amado nos braços***. Mas esta é apenas uma das primeiras experiências que tanto poderiam ser melhoradas, às quais o Davi nos dá a honra de viver, sendo nosso filho mais velho.
Para finalizar, transcrevo um trecho do primeiro e-mail que o Davi recebeu, enviado por um grande amigo, que diz:”(...) treine com eles [seus pais] sua paciência, seu perdão (você vai ver com eles vão errar) e, acima de tudo, o amor.” Que o Davi não se acanhe em multiplicar quantas vezes forem necessárias, para tudo na vida, as setenta vezes sete.

*Parto normal hospitalar ocorrido em 13/08/2007; relato escrito em março/2011.
**http://www.orkut.com.br/CommMsgs?cmm=1651309&tid=5265065760945861957&kw=Ina+may&na=3&nst=31&nid=1651309-5265065760945861957-5265255899155144638
*** Dois anos e dois meses depois, nasceu em casa o Pedro, irmãozinho do Davi.

***
Aline Elise, mãe do Davi, nascido de parto normal hospitalar, e do Pedro, nascido de parto domiciliar.
Leia também o relato de parto do Pedro.
Leia também o depoimento da Aline sobre a importância do grupo.
Leia também outros relatos de parto.

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