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9 de agosto de 2021

Órfãs. Órfãos.

O Airbus A380: de 489 a 615 passageiros
O Boeing 747: 410 passageiros
Um 747 e um A380 lotados se espatifando no chão, sem sobreviventes: aceitaríamos isso todos os dias?

Os maiores aviões de passageiros no mundo são o Airbus A380 e o Boeing 747, que são capazes de transportar de 410 a 615 passageiros de uma só vez. Uma maravilha tecnológica, não é mesmo? E se todos os dias duas dessas aeronaves despencassem do céu, matando todas as pessoas que estavam a bordo? Pois é o que está acontecendo no Brasil, nestes "dias melhores" de pandemia, em que em média 907 pessoas morrem por dia de Covid-19. Um Airbus A380 e um Boeing 747 mergulhando no chão, sem sobreviventes. Por dia. Todos os dias. Nos últimos sete dias. Motivo para comemorar? Sei não. 

E se colocarmos uma lupa no problema, enxergaremos ainda outros. Quem são essas pessoas que morreram por Covid-19? Deixaram família? Parentes? Filhos e filhas, talvez? Netos e netas, já que muitas eram idosas? Será que essas pessoas que se foram de uma hora para outra deixaram para trás dependentes financeiros? Dependentes de cuidados?

Tudo isso ao mesmo tempo.

Em 2019, no Brasil, uma pessoa idosa era responsável por mais da metade de todos os rendimentos recebidos em cerca de 15 milhões de domicílios. Vale mencionar que esse dinheiro recebido pelas pessoas mais velhas provinha de aposentadorias e pensões, e também do trabalho, que essas pessoas continuaram a executar mesmo após os 60 anos.

Neste biênio 2020-2021, a pandemia de Covid-19 tem afetado as pessoas mais velhas de maneira bastante contundente: são elas as que mais morrem por essa doença e, no Brasil, são também as que tiveram maior redução da renda do trabalho. Como se isso por si só já não fosse trágico, é preciso dizer que mais de 13 milhões de lares brasileiros (mais de 18% do total de domicílios) só possuíam como renda o valor recebido por uma pessoa idosa. Um estudo calculou que se todos esses idosos falecessem, aproximadamente 5 milhões de pessoas com menos de 60 anos ficariam na rua da amargura, sem qualquer tipo de renda.

Olhando para o outro extremo da vida, encontramos ainda outras pessoas impactadas pela pandemia, mesmo não sendo elas as principais vítimas fatais da Covid-19. Crianças e adolescentes, afastados das escolas e de todos os outros espaços de socialização, estão também perdendo pais, mães, avôs, avós, seus cuidadores e provedores.

Outro estudo (este internacional) estimou que até abril deste ano, mais de 1 milhão de crianças e jovens de até 18 anos ficaram órfãs de pai, de mãe ou de ambos por causa da Covid-19. Se acrescentarmos a morte de avôs e avós que moravam junto com essas crianças e jovens, 1,5 milhão de pessoas menores de idade perderam seus cuidadores no mundo. No Brasil, com dados mais atualizados, cerca de 263 mil crianças e jovens vivem essa situação: estão sem seus cuidadores e/ou responsáveis financeiros, porque eles faleceram de Covid-19.

Estimativas de crianças e jovens que ficaram órfãs por causa da Covid-19
Estimativas atualizadas podem ser encontradas aqui: https://imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil

É necessário fazer um destaque no caso brasileiro, com relação às mortes maternas relacionadas à Covid-19. Há anos sabemos que a taxa de mortalidade materna no país é alta demais, em especial se considerarmos que somos um país de renda média e que temos um sistema de saúde que provê assistência pré-natal e ao parto para quase todas as mulheres. Mas no contexto da pandemia, nossos resultados são assustadoramente ruins, com muito mais mortes de mulheres em seu ciclo gravídico-puerperal. Segundo o observatório obstétrico de Covid-19, temos até o momento 1.559 mortes maternas ligadas a essa doença, com uma letalidade inaceitavelmente mais alta entre pretas e perdas. 

Dados do observatório obstétrico de Covid-19
As desigualdades por raça/cor saltam aos olhos: entre as mulheres pretas que tiveram Covid-19 na gestação ou no puerpério, 17,2% faleceram


Nossa primeira reação talvez seja de consternação, misturada a um sentimento de fatalidade. Mas é importante dizer que se a pandemia não poderia ter sido evitada diretamente pelos governos dos países individualmente, a magnitude do problema tem relação direta com a resposta elaborada pelos líderes nacionais. Existe um amplo campo de conhecimento chamado saúde pública, que tem teoria, método, prática e pesquisa próprios, para nos dizer como é melhor agir diante de problemas que afetam o bem-estar da população. Por isso mesmo temos países com resultados tão diferentes, considerando número de mortos em relação à população, fechamento ou não das atividades comerciais, culturais e educativas, e por aí vai. Desnecessário dizer que estamos entre os piores países nesses quesitos, mesmo tendo um sistema de saúde universal e gratuito.

Mesmo que queiramos desconsiderar a responsabilidade do atual governo federal nesse problemão chamado pandemia, não podemos nos resignar a olhar, por exemplo, para essas crianças e jovens que perderam seus principais cuidadores para a Covid-19.

De epidemias anteriores, sabe-se que crianças e jovens, mesmo que sobrevivam à crise sanitária, apresentam problemas psicossociais, neurocognitivos, socioeconômicos e biomédicos quando perdem um de seus cuidadores, mesmo quando podem continuar contando com outro cuidador. Por exemplo, um adolescente que perde seu pai, e passa a viver apenas com sua mãe. Para essas pessoas jovens que passaram pelo luto por causa de uma epidemia, os riscos de adoecimento incluem estresse pós-traumático, depressão e tentativas de suicídio. Outros riscos incluem violência doméstica, além de violência física, emocional e sexual. 

Que crianças e jovens de hoje carregarão para sempre a história da Covid-19 em seus corpos, não tenho qualquer dúvida. Mas em que medida sua noção de futuro está comprometida? As estimativas dos estudos trazem os que efetivamente perderam parentes e cuidadores, e quanto aos adultos que sobreviveram, mas que estão sofrendo com sequelas da Covid-19? Não são poucos os que além de não conseguirem mais trabalhar também precisam e precisarão de suporte para as tarefas diárias. Quem será responsável por isso?

Pensando no que os estudos trazem como consequência direta para crianças e jovens que ficaram órfãs, o mesmo campo da saúde pública que ajuda a organizar a estratégia de combate à doença auxilia também na elaboração de medidas de mitigação. Existem intervenções educativas para prevenção de violência, por exemplo, e qualquer tipo de programa visando proteger essas crianças e jovens que ficaram órfãs por causa da pandemia deve também proteger meninas de casamentos precoces, de gestações não desejadas e doenças transmissíveis sexualmente, especialmente o HIV. Por fim, mas não menos importante, as intervenções devem ser no sentido de fortalecer o cuidado sem a institucionalização dessas crianças e jovens. 

Traduzindo isso para o nosso cotidiano brasileiro, significa olhar principalmente para as famílias e regiões vulnerabilizadas e prover muito apoio para que tenham casa, água, comida, roupa, saúde, educação, lazer, ambientes protegidos da violência para que possam crescer e se desenvolver. É da geração futura que estamos falando, não há como negligenciar (ainda mais) a sua existência.

156.800 crianças e jovens ficaram órfãs de pai ou de mãe por causa da Covid-19. 
180.700 sofreram com a morte de um ou ambos os pais ou com a morte do avô, da avó.
263.200 menores de idade tiveram de lidar com a morte de um ou ambos os pais, morte dos avós e/ou morte de outros parentes mais velhos co-residentes.

1.559 óbitos maternos relacionados à Covid-19.

Referências:
https://www.scielo.br/j/csc/a/pgDTDv7hLHfHRtsvbFbsQqg/?format=pdf&lang=pt
https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2821%2901253-8
https://imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil
https://observatorioobstetrico.shinyapps.io/covid_gesta_puerp_br/



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