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23 de março de 2010

Relato de parto do Pedro - por Aline

Numa tarde chuvosa de segunda-feira, com uns 7 meses de gravidez, eu e o Davi, nosso filho de 2 anos, recebemos duas visitas queridas. Uma delas veio me ajudar a relembrar respiração e relaxamento para o trabalho de parto, a outra veio trazer um mosaico com o nome do Pedro. Tinha torta de banana com chocolate e um chazinho. Estava um clima muito gostoso, mas só me dei conta dele quando escutei: “que delícia aqui, tá... um cheiro de lar!”. Fiquei muito feliz e emocionada, porque eu sabia exatamente o que era isso, de tantas vezes ter sentido em casas de avós - em lares de avós.
Posso dizer que foi aí que eu me rendi ao parto domiciliar. Eu não percebi na hora, mas foi esse momento que me fez passar a desejar que o Pedro nascesse aqui em casa. Alguns dias depois, na consulta com a homeopata da família, que recomendava o parto domiciliar desde o início da gestação, se assim quiséssemos, perguntei muito e me pus a chorar. Estava convencida. Os próximos dias foram para ir revelando ao Rodrigo, meu amado esposo, que eu já tinha uma decisão, já tinha elegido um plano A dentre as várias opções que havíamos desenhado. Por amor ele me ouviu, por amor ele se abriu, por amor ele e eu continuamos avaliando os prós e contras. Até que a decisão passou a ser nossa.
Retomamos contato com a parteira que já havíamos conhecido há alguns meses e fizemos mais mil perguntas a nossa homeopata, que se dispôs a acompanhar o parto também. Ficamos ainda mais confortáveis com tudo. Preferimos não revelar nossas intenções à família, apenas minha mãe e meu pai souberam antes do dia D. Imaginávamos que as tensões e medos de todos poderiam interferir no conforto da decisão. Não sei se teria sido assim. Depois que o Pedro nasceu a idéia foi tão bem recebida, os familiares e amigos ficaram tão tocados, tão admirados e tão agradecidos! Mas desde o nascimento do Davi, parto normal hospitalar, achamos mais confortável evitar as pressões que acabam acontecendo perto da hora P.
O Pedro tem o nome do meu avô, uma homenagem. A data prevista para o parto era 4 de novembro e eu queria muito que ele nascesse no dia 5, data natalícia do meu outro avô. Mas pelas minhas contas as 40 semanas se completariam dia 7.
Estava combinado com meu GO que, se “nada acontecesse” até dia 4, eu deveria ligar para ele. Dia 4 fiz uma bela caminhada, dia 5 caminhei de manhã e só liguei para ele à tarde. Ele disse que eu fosse à maternidade para uma amnioscopia. Não gostei nada da idéia: já sabia que estava com dilatação de 3 para 4 dedos (porque minha parteira tinha verificado), talvez quisessem me segurar por lá. Além disso, não me convenci da necessidade desse exame. E foi a sorte, porque houve mecônio no nascimento, e se já houvesse no momento do exame, poderia apavorar a equipe e pôr em risco inclusive um parto normal. Não fui. Andei por mais uma hora no entardecer do dia 5. Nesses últimos dias, de vez em quando eu tinha umas contrações doloridinhas.
Dia 6, sexta-feira, amanheci decidida a conversar com meu GO. Liguei para ele e disse que não ficasse na expectativa da minha amnioscopia, porque eu não iria. Falei também que queria muito entrar em trabalho de parto em casa e que se tudo estivesse bem, poderia ficar por aqui mesmo e dar à luz em casa. Ele estava esperando assistir ao parto no hospital em conjunto com a parteira. Foi uma conversa muito boa, pude agradecer sua atenção e cuidado durante o pré-natal e antes de desligar perguntei se poderia passar no consultório na segunda-feira, caso nada acontecesse. Na verdade foi um telefonema libertador e acho que a partir daí as coisas engrenaram mesmo.
Fui ao parque com minha mãe e o Davi. Eles ficaram jogando bola e eu andando com o Pedro na barriga. Foi um momento inesquecível, delicioso, lindo. Quando pensava em parar, eu dava uma volta mais. Enquanto andava eu cantava baixinho:
“Espero por Ti / Sou sede de Ti / Ouve meu grito / Quero liberdade/ Quero meu pé na estada que me leva a Ti...” e
“A voz do anjo sussurrou no meu ouvido / E eu não duvido, já escuto teus sinais / Que tu virias num amanhã de domingo / Eu te anuncio nos sinos das catedrais / Tu vens, tu vens, eu já escuto teus sinais”.
Depois fiquei alongando, soltando o quadril, como minha parteira tinha me ensinado. Passamos a tarde na casa da minha mãe, brinquei muito com o Davi no quintal, com o barrigão de fora, agachando para aliviar as contrações. Uma delícia não ter nenhum problema em “exagerar”, “carregar peso”, etc: já estava na hora de nascer, mesmo...
Algumas contrações pareciam mais “definidas”, eu liguei para minha parteira umas duas ou três vezes, um pouco preocupada com o trânsito do horário de pico. Ela me disse que daria tempo e que eu não ficasse racionalizando, medindo as contrações, mas que deixasse meu corpo se entregar, que eu iria perceber a evolução mesmo sem cronometrar. Segui a risca essa sugestão. Estava um dia bem quente, no início da noite fui tomar banho, pensando “será o último banho grávida?”. Umas oito e pouco tive uma contração definida e senti uma umidade, não sei bem o que era. Estava meio alheia às conversas da família, na sala. O Rodrigo chegou para nos buscar. Eu tinha ido dirigindo, mas fui falando com ele à tarde por telefone e decidimos deixar o carro lá e pegar no dia seguinte (rsrs, o carro ficou lá por um bom tempo!).
Fui embora certa de que o Pedro nasceria naquela noite. O Davi dormiu no carro. Ao chegar em casa, separei umas fraldas, toalhas, e deixei em cima da mesa. Parecia tudo pronto. Na verdade, ainda tinha muita coisa para ser feita, mas é como se nada importasse, o essencial estava lá. Assisti um pouco de televisão, era tão estranho pensar que supostamente alguns instantes antes do parto tudo estava tão normal, sem cerimônia nenhuma... brinquedos no chão, roupas espalhadas, louça na cozinha (até que a casa estava arrumadinha, porque passamos o dia fora!). E por outro lado não havia escândalo nenhum nisso. É o fluxo da vida mesmo.
As contrações silenciaram. Fui deitar por volta das dez com uma sensação de “parou“. Liguei para minha mãe dizendo que dormisse tranqüila, porque pelo jeito não estava acontecendo mais nada. Fiquei deitada, mas não peguei no sono logo, fiquei rezando e adormeci mais de onze horas. Meia noite e vinte acordei com uma contraçãaaaao. Fui ao banheiro, voltei e deitei mais um pouquinho para descansar, mas não cairia no erro de ficar deitada como fiz durante o trabalho de parto do Davi (como era madrugada, minha intenção era dormir entre as contrações). Como mudei nesses dois anos! Como aprendi sobre gestação, parto, nascimento, e sobre mim!
Tentei ir para a sala, mas o resto da casa me parecia “impessoal”, quis ficar no quarto mesmo. Fui para a cozinha e comi alguma coisa, voltei para o quarto com a bola suíça. Fiquei sentada na bola rebolando, com o rosto apoiado na cama, numa almofadinha. Fui ao banheiro várias vezes.
Por volta da 1:30h. chamei o Rodrigo e decidimos ligar para a parteira. Ele foi buscar o telefone, eu mesma falei. Ela me perguntou a freqüência das contrações e eu disse “mas você me falou para não medir...”. Ela me orientou a ir para o chuveiro e eu perguntei se isso não relaxaria e faria as contrações pararem. Ela falou bem sério comigo perguntando o que eu queria. Em nenhum momento eu tive dúvidas de que ficaria em casa, na verdade para mim já estava acontecendo e assim continuaria, mas entendo esse questionamento dela como mais um convite a parar de racionalizar (se no chuveiro o processo parasse, era porque não era trabalho de parto, senão continuaria e pronto. Deixa fluir.). Nem registrei detalhes da conversa, porque as contrações estavam fortes. Quando vi que ela ia desligar, eu disse que durante o telefonema tinha tido três contrações (tempos depois, quando a conta de telefone chegou, vi que essa chamada teve 4 minutos e 20! E eu tive três contrações! Foi bom mesmo não ter medido).
Fui para o chuveiro. Muitas vezes, quando eu imaginava o trabalho de parto, pensava que seria bem humorado subir na balança imediatamente antes e imediatamente depois do parto. Mas naquela hora olhei para a balança e não tive humor nenhum para fazer isso, rsrs... Engraçado que pensei “daqui a pouco, quando a dor melhorar, eu subo”. Até parece...
Fiquei em pé com a água morna caindo nas minhas costas por um tempo. Foi bom porque aliviou o calor, mas logo comecei a ficar com frio. O Rodrigo fechou a janela do banheiro e começou a derreter... Resolvi ficar de quatro, rebolando, no chão da banheira, mas logo meus joelhos e cotovelos começaram a doer bastante por causa do meu peso. O Rodrigo foi buscar o tapete de EVA do Davi para eu me apoiar, mas não deu muito certo porque as partes começaram a boiar e ficar arrumando me irritava. Pedi umas toalhas de rosto e o Rodrigo me ajudou a colocá-las sob os braços e joelhos. Aliviou por pouco tempo, mas em alguns momentos essa dor era mais incômoda do que as próprias contrações. Lembrei que soltando a mandíbula a gente solta a pelve também e comecei a abrir e fechar a boca, emitindo um gemido como um /gzangzangzan/ mal articulado, especialmente durante as contrações.
“Daqui a pouco” escutei a voz da minha parteira, Vilma: “pra frente e pra trás” (minha tendência era sempre rebolar para os lados). Eu sorri, disse “oooi”. Perguntei as horas, eram 2:30h. Não acreditei que uma hora havia se passado, parecia muito menos! Perguntei se ela queria que eu avisasse sobre as contrações, e eu logo disse “acabou de acabar uma” e uns cinco segundos depois “não, só está acabando agora”, ela riu. Eu mesma não ia conseguir avisar e logo percebi que com a experiência dela ficava mais do que nítido quando começava e acabava a contração, então desisti. A Vilma perguntou se tínhamos ligado para a médica, então eu pedi que ela fizesse isso. Ao voltar ela não disse nada. Depois perguntou se eu queria verificar a dilatação. Eu aceitei. Tive que mudar de posição na banheira para me aproximar dela e percebi como estava difícil comandar meus movimentos. Sete centímetros! Que alegria! Fiquei muito satisfeita, comemorei com o Rodrigo, “uaaau!”, mas logo pensei “ai, e os outros três?!”.
Uma vez, conversamos sobre nossa vontade de que o Pedro nascesse na água. A Vilma fechou a tampinha da banheira para já ir enchendo, acho que ela viu que estava progredindo rápido. Fiquei mais um pouco ali, rebolando, movimentando a mandíbula, gemendo. A sensação térmica indefinida e variável estava muito incômoda. Por causa da dor nos apoios, fiquei em pé novamente, embaixo do chuveiro, com a cabeça tombada para o lado direito. A Vilma me sugeriu retificar a cabeça e perguntou se eu estava evitando molhar o cabelo. Não era isso, eu não sei por que estava torta, mas era muito custoso comandar o movimento de arrumar a cabeça.
Em algum momento perguntei se eles tinham conseguido falar com a médica, só para ter uma idéia de quando ela chegaria, mas a Vilma disse que não. Eu estranhei e ela disse que o celular deu caixa postal, se estava tudo bem pra mim. Olhei pro Rodrigo e fiz que sim com a cabeça, na verdade na hora não me importei nem um pouco com isso, não dei espaço para me importar, quis “continuar meu trabalho” sem gastar energia lidando com esse inesperado.
Não consigo lembrar com exatidão a cronologia desse pedaço, mas sei que quando eu estava mergulhada na água da banheira senti vontade de ir ao banheiro. Com muita dificuldade (começar a falar era difícil também) disse isso. A Vilma disse que eu podia fazer ali mesmo, depois era só remover. Num instante vi o Rodrigo chegar no banheiro com um balde e uma pazinha de lixo. Ri, olhei para a Vilma e ela riu também. Achei isso lindo, essa passagem tão boba ilustra muito bem como o Rodrigo estava ali presente, completamente disponível. Mas eu ainda estava tentando entender se era mesmo vontade de ir ao banheiro. A Vilma disse “depois a gente troca a água”, mas aquilo me deu uma preguiça tremenda, encher tudo de novo? Ia demorar, minha vontade era “agilizar”. Não falei nada, acho que só acenei “não” com a cabeça. Ela me disse para não segurar a vontade, porque quem segura uma coisa segura outra – no caso, o bebê! – também. Então eu me superei e saí dali, apoiada pelo Rodrigo. Sentei no vaso e a pressão foi muito forte, como se estivesse sentando numa cadeira. Eles colocaram uma toalha nas minhas costas, porque o frio aumentou muito nessa hora. Vi que não ia acontecer nada e resolvi ficar de cócoras no chão. Segurei bem firme na pia e comecei a transferir o peso de uma perna para outra, com o quadril bem baixo.
A parteira tinha escutado o coraçãozinho do Pedro umas duas vezes na banheira e nesse momento escutamos de novo e ela me mostrou como estava posicionando o aparelho bem mais para baixo, sinal que ele estava encaixando cada vez mais. Ouvimos o coraçãozinho dele por um bom tempo, perguntei se estava tudo bem, ela me garantiu que estava tudo ótimo e que seria a primeira a dizer caso não gostasse de alguma coisa. A partir daí nem pensei em me preocupar com isso, apenas confiei.
Foi muito bom sair da banheira, acho que estava cansada da posição. Mas a dor continuava muito forte, só a posição estava melhor. Quando eu estava de cócoras foi a única vez que fiquei contrariada pelo fato da médica não estar lá, porque me lembrei que tínhamos providenciado uns remédios homeopáticos para o parto e certamente algum deles poderia aliviar aquela dor. Dias depois comentei isso com a parteira e ela falou que eu podia ter dito isso a ela; realmente podia, mas falar dava tanto trabalho...
O Rodrigo ficou sentado na tampa do vaso, atrás de mim, me sustentando pelas axilas. E eu balançando de cócoras. O contato físico com o Rodrigo durante o trabalho de parto foi impressionantemente confortável. O toque da Vilma também; os dois não ficaram pegando em mim o tempo todo, mas os momentos em que me lembro de ter sentido o toque deles foram de muito alívio. Sempre que eu “aconselho” alguma amiga grávida, eu faço questão de dizer como é fundamental o contato físico do marido no trabalho de parto.
De vez em quando eu choramingava alto, não queria gritar para não acordar o Davi, mas nem senti mesmo vontade de gritar. Estava bem dolorido, nos intervalos entre as contrações doía também, como se houvesse uma dor contínua e picos de dor sobrepostos a ela. Nessa hora me lembrei de Nossa Senhora. Tudo pareceu ficar mais fresco e mais claro. Veio a inspiração de cantar e eu comecei, com uma afinação que não era minha:
“Ó minha Senhora e também minha mãe
Eu me ofereço inteiramente toda a Vós
E em prova da minha devoção eu hoje vos dou meu coração
Consagro a Vós meus olhos, meus ouvidos, minha boca
Tudo o que sou desejo que a Vós pertença
Incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me como filha e propriedade vossa. Amém”

Tudo ao redor pareceu parar. Experimentei um alívio muito profundo enquanto cantava. Depois disso, entre as contrações eu simplesmente repousava. Vinha a dor, forte, dura, e depois eu só sentia conforto e paz. Estava num colo de Mãe, no colo de uma Mãe que, há dois mil anos, numa estrebaria, deu à luz a Luz.

A Vilma me perguntou se eu queria comer. Lembrei que tinha lido sobre mel no trabalho de parto e tinha providenciado para essa hora. Pedi ao Rodrigo, mas a Vilma perguntou se eu não queria alguma coisa salgada que tivesse em casa ou uma fruta. Eu pedi manga “cortada” – como se ele fosse e trazer uma inteira... rsrs. Comi uns pedaços e falei “preciso passar fio dental”. A Vilma arregalou os olhinhos , haha, não cheguei nem perto de expressar que estava brincando.
Em algum momento dessa etapa em que eu estava entre vaso/chão, por volta de umas 3:00h., o Davi chorou. Lembro que o Rodrigo não estava no banheiro, então acho que ele tinha ido buscar a manga, e eu pedi à Vilma que verificasse se ele tinha ouvido o Davi. Foi muito ruim ficar sozinha. O Rodrigo atendeu o Davi, que dormiu num instante, e voltou.
De vez em quando a Vilma abaixava para olhar entre minhas pernas, e eu pensava “o que ela está fazendo, não sabe que ainda vai demorar?!”. Ela comentou que eu estava na transição para o expulsivo e eu disse “não, não é assim a transição!” Hahaha, acho que minha expectativa era de uma “solenidade” nessa hora, como se aparecesse um luminoso em algum lugar anunciando a transição. Depois de um tempo resolvi perguntar se estava na transição, só para ouvir de novo, e ela disse que já estava no expulsivo. Muito estranho como é mesmo uma divisão didática, não foi nada “definido”.
Ela viu que meus pés estavam ficando roxos e me sugeriu esticar as pernas ali no chão mesmo (acho que tinham estendido uma toalha antes de eu sair da banheira). Eu demorei muito para responder. Tinha a impressão de que não conseguiria, porque era muita pressão embaixo, parecia que não poderia fechar as pernas para a “manobra”. Comentei que queria deitar na cama, mas um pouco descrente que aquilo fosse possível. Recebi o maior incentivo, a Vilma disse que eu poderia tentar dormir um pouco e o Rodrigo praticamente me carregou , eu fui bem curvada e fiquei de quatro na cama (suíte).
A Vilma foi arrumando uns travesseiros sob minha barriga e me cobriu, o que foi muito ruim, porque nessa hora eu estava com calor. Mas eu não conseguia expressar isso, não estava entendendo direito se tinha algum motivo para me cobrir, até que perguntei se precisava ficar coberta e a Vilma entendeu e tirou as cobertas. Continuei rebolando e fazendo aquele som durante as contrações, mas estava tensa depois da “mudança” para a cama. Tomei consciência disso e tentei relaxar, lembrei que Deus estava cuidando de mim e da presença de Nossa Senhora. Soltei muito meus ombros e meu rosto, de bruços sobre o travesseiro, deu certo, foi muito bom, expirei tranqüila algumas vezes, é como se esses breves momentos de relaxamento entre as contrações tivessem a qualidade de um cochilo. Na dor eu choramingava, nessa hora foi mais alto, e optei por não me preocupar em acordar o Davi, como se tivesse uma clareza que agora ele não acordaria.
A Vilma me pediu para deitar de lado, para que ela pudesse colocar o lençol descartável na cama. O outro lado da cama estava forrado com plástico há algumas semanas, para quando a bolsa estourasse, mas a lucidez desses detalhes não combina com trabalho de parto, eu até pensei nisso, mas deixei pra lá. Continuei deitada do lado esquerdo e pedi a bola para apoiar minha perna direita, estava pesando muito. O Rodrigo deitou atrás de mim, bem pertinho, com a mão meu ombro e me lembrando de abaixar o queixo (minha tendência era hiperestender o pescoço). Sentir o toque do corpo dele foi novamente muito confortante, disse isso e ele se aproximou mais. Tiramos a bola.
Pedi pra Vilma “fala que eu vou conseguir?” e ela imediatamente: “mas você já tá conseguindo! Tá nascendo!”. Perguntou se queria que apagasse a luz, eu aceitei, foi ótimo, porque eu não teria me lembrado disso e ficou muito acolhedor o ambiente com a luz do banheiro acesa e a do quarto apagada.
Então ela disse que quando eu tivesse vontade poderia fazer força. Que bom que ela falou isso, porque pode parecer maluco, mas eu tinha esquecido completamente da força. Até aquele momento nem tinha me passado pela cabeça fazer força! E eu pensava que, indo tudo tão natural assim, seria uma vontade natural também. Na verdade em momento nenhum eu senti os puxos, e, como no parto do Davi - com ocitocina sintética - eles forma muito definidos e intrusos, acho que estava esperando algo assim. Bem, tentei fazer uma força só para ver o que acontecia e o interessante foi que no fim da força, aí sim dava vontade de fazer uma força ainda maior e eu sentia o Pedro descendo.
Não sei quantas forças fiz, acho que umas oito ou dez, talvez mais. A bolsa literalmente explodiu numa força, eu e o Rodrigo tivemos a impressão de ver o contorno do líquido no ar, como nos filmes em câmera lenta. A Vilma ficou toda molhada e eu pedi desculpas, hahaha. Foi gostoso quando toda aquela água quentinha saiu, como se a pressão diminuísse.
A Vilma sugeriu baixinho para eu chamar o Pedro; eu fiquei relutante por uns segundos e quando comecei não parei mais: “Vem, Pedro, vem com a mamãe, filhinho, vem no colo da mamãe!...”
Esse momento na cama deve ter durado uma meia hora. A Vilma insistiu para eu pôr a mão na cabecinha do Pedro quando ele coroou, eu só queria empurrar, queria que nascesse logo; eu estava segurando a minha perna e era muito trabalhoso comandar o movimento do braço para tocar a cabecinha do Pedro. O Rodrigo levou minha mão e eu senti o cabelinho dele. Continuei fazendo força e senti um ardor e só nessa hora lembrei da possibilidade de laceração, mas não dei a menor importância para isso, o ardor ia aumentando e eu fazendo mais força, não tomei cuidado nenhum.
Senti a cabecinha sair, o maior alívio do mundo, uma sensação muito agradável, a Vilma desenrolou uma circular de cordão rapidinho (eu nem percebi direito) e depois mais forças e o corpinho saindo, deu para perceber o corpinho dele “afinando” do bumbunzinho para os pés. 3:56h. Ele fez “ihiii”, baixinho, não chorou. Imediatamente ela o colocou em meu colo, eu disse: “que pequenininho!” e eles dois “não, não é pequenininho não!”. Eu sentia o cordão esticado por fora da minha barriga. A Vilma ajudou o Pedro a abocanhar o peito e ali ele ficou, conectado comigo, mamando, deitado no meu braço esquerdo enquanto eu segurava o bumbunzinho molhado dele com a outra mão. Aquele cheiro de filho, tão especial, que eu sinto agora ao escrever. Não chorei na hora, foi um êxtase, parece que a emoção passou do ponto que faz chorar.
A Vilma colocou uma fralda de pano e uma toalhinha de capuz, bordada pela minha sogra, cobrindo o Pedro no meu colo. Falei um pouquinho com ele, nós três adultos ficamos conversando um pouco. Sem a menor pressa a Vilma pegou a tesoura para cortar o cordão. Deitei de costas, com muito custo. O Rodrigo nunca pensou em cortar o cordão, estava decidido que não cortaria e eu não ia questionar. Mas nessa hora ele tomou a iniciativa como se fosse a coisa mais clara do mundo e cortou. Disse que ficou impressionado com a dureza do cordão.
Só a partir dessa hora lembramos de fotografar. Queria muito ter mais fotos. As que temos não estão estéticas. Mas as lembranças são tão lindas!
Percebi uma movimentação da Vilma e lembrei da placenta... Falei “ah, deixa a placenta pra lá, não quero mais!” mas não tinha jeito... Enquanto o Pedro mamava senti uma bola saindo, foi gostoso, fiquei animada achando que tinha sido a placenta, mas foi só um coágulo, beeem mais fácil. Fiz uma força e senti uma cólica, a placenta saiu, aquela sensação tão boa de alívio, embora a laceração de grau 2, de uns 3 cm, estivesse ardendo. Pedi para ver a placenta, coisa que queria desde o parto do Davi, quando meu pedido, idêntico a esse, foi simplesmente ignorado. A Vilma explicou e mostrou tudinho. Na penumbra não consegui ver com nitidez, mas fiquei satisfeita. Achei a placenta linda. Ela ficou guardada na geladeira e no dia seguinte minha mãe a enterrou num vaso grande onde está plantado um jasmim viçoso e cheiroso. Com o cordão umbilical minha mãe montou um formato de coração.
A Vilma deu uma arrumada na bagunça do quarto, perguntou se estava tudo bem e foi para a sala, para que pais e filho curtissem o momento com privacidade. O Pedro não parava de mamar. Eu e o Rodrigo ficamos reconstituindo tudo, tentando lembrar como tinha acontecido, o Pedro era parte da cena, era estranho falar dele com ele ali, mas ele estar “do lado de fora” era apenas a conseqüência, foi tudo um contínuo. Eu estava eufórica, acordadíssima, aquele momento pós-parto imediato poderia ter durado muito mais. Se não me engano foi nesse período que o Davi deu sua segunda acordada da noite, eu até me animei pensando que ele conheceria o irmãozinho, mas o Rodrigo foi atendê-lo e ele dormiu instantaneamente.
Quando a Vilma voltou, ficou espantada pelo Pedro ainda estar mamando sem parar. Tinham se passado 50 minutos desde que ela saíra. Então ela pediu licença para pesá-lo e vesti-lo. Para isso, o Rodrigo o segurou pela primeira vez. Eu fiquei muito emocionada, chorei rindo, queria abraçá-los, mas não conseguia nem me mexer. Tirei umas fotos borradas, a Vilma tirou umas fotos borradas da gente, sem flash, eu toda esparramada.
Pesamos o Pedro duas vezes, porque esquecemos de tirar foto na primeira pesagem, hahah... parecia que eu queria descontar as fotos perdidas... 3, 680g. Ele chorou na segunda vez, foi muito legal ouvi-lo. A Vilma perguntou onde estava a roupinha que o Pedro vestiria e ela estava na mala “da maternidade”, rsrs, que ficou por semanas no quarto dos meninos. Por um instante pensamos que o Davi acordaria, mas lembrei que antes de deitar eu a trouxe para o nosso quarto. O Rodrigo encontrou lá dentro da mala: body e mijão amarelinho com balinhas e docinhos desenhados em laranja, macacão amarelo com cavalinho “upa, upa!”, escolhido pelo papai, já usado pelo Davi, gorrinho de lã amarelinho. Este deu um pouquinho mais de trabalho para encontrar na mala... A fraldinha descartável minúscula que ele usou, a Vilma disse, rindo, que não daria nem por uma semana. Eu tinha imaginado vestir o Pedro, mas nem considerei essa possibilidade na hora, tinha sido muito exigida fisicamente.
A Vilma perguntou se precisávamos de alguma coisa ou se podia ir, deu algumas orientações, “Aline, descansa, você pariu” (que delícia ouvir isso!). Disse que voltaria no dia seguinte, ou que ligássemos se precisássemos dela à noite. Eram umas 5:30h.
Quando o Pedro voltou para o meu colo, dormiu. O colocamos ao meu lado, na cama, foi aí que eu vi o rostinho dele pela primeira vez. Na verdade, só no meio do dia vi direitinho, mas parecia um rosto tão misterioso, tão desconhecido, tão diferente do meu “parâmetro” (o rosto do Davi), me atraía para examinar cada detalhe, para olhar mais e mais. O Rodrigo não ficou à vontade em ficar deitado na cama, acho que teve medo de “atropelar” o Pedro, e foi para a sala. Logo o Pedro chorou e eu o “arrastei” para meu peito, foi bem difícil ajudá-lo a abocanhar, porque eu não conseguia levantar a minha cabeça, mas nem precisou: ele deitou em mim e dormiu. Lembro nitidamente do sonzinho da sua respiração irregular.
Dei umas cochiladas, mas logo fiquei com vontade de fazer xixi; muita dor nas costas, muita dificuldade para levantar, desisti. Tentei chamar o Rodrigo algumas vezes, mas não queria acordar o Davi. Quando escutei o Davi acordar, por volta das 7:00h., achei ótimo poder chamar bem alto o Rodrigo.
O Davi pediu água de côco e enquanto o pai foi buscar, ele saiu do quarto, coisa que nunca faz. Passou pela porta do meu quarto e eu disse “Davi, sabe o que aconteceu? Olha quem tá aqui!” E ele: “Ah, o Pido! Quero essa água de côco aqui!” (apontando para o cabelinho do irmão). Então eu fiz de conta que entreguei um copo a ele, a partir da cabecinha do Pi, que então já estava sem o gorro, bem quentinho no peito da mamãe. Ele recusou o “copinho”: “Nãaao!” Ficou na pontinha dos pés e fez um carinho na cabecinha do Pi. Saiu correndo atrás de sua água de côco.
Eu poderia continuar relatando os acontecimentos um atrás do outro. Uma das coisas mais impressionantes dessa experiência natural foi o quão contínua ela foi. Até hoje, dia em que o Pedro comemora seus 4 meses, um fato atrás do outro, uma emoção atrás da outra, um desafio atrás do outro, sem interrupções. Nesses quatro meses, os que passaram mais rápido em todos os meus trinta anos, foi ficando mais nítido a cada dia como a vida é feita de imprevistos e como as coisas acontecem “apesar” de nossas previsões: a realidade se impõe.
Agradeço muito a Deus pela nossa saúde; a Nossa Senhora, por ter me acompanhado tão maternalmente; ao Rodrigo, por confiar em mim, por nos amar e querer o melhor para nós; ao Pedro, por ter feito seu trabalho com tanta simplicidade e continuar assim até hoje; ao Davi, pela forma carinhosa como recebeu o irmãozinho e sempre o tratou; a Vilma Nishi pela sensibilidade de fazer apenas o necessário, com tanto respeito.
Escrever este relato foi surpreendentemente bom.

***
Aline Elise, mãe do Pedro, nascido de parto domiciliar, e do Davi, nascido de parto normal hospitalar.
Leia também o depoimento da Aline sobre a importância do grupo.
Leia também outros relatos de parto.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Denise e Aline,
Que relato de parto lindo!
Emocionante!!!
A consagração a Nossa Senhora foi um momento e tanto, hein?!
Parabéns, que Pedro e Davi sejam sempre fontes de alegria e luz!
Abraço
Tatiane

Viviane disse...

Este foi um dos relatos de parto mais lindos que já li até hoje. Parabéns, Aline! A sua sensbilidade no relato é maravilhosa1

katia disse...

Ler um relato lindo e com final feliz como este me faz cada vez mais ter certeza do que quero para mim: parto domiciliar. Parabéns!

 

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