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21 de março de 2012

Podia ser diferente

Eram 17:40, quinta-feira.

Chegava ao fim o processo que havia começado quase 18 horas antes. Vozes ao redor, várias. Um cansaço extremo, um torpor. De repente, uma dor lancinante: extensão da episiotomia para uma área não anestesiada. Neocórtex ativada pela dor, ela se recorda das cenas recém vividas, como em um filme. O jipe voltando aos sacolejos da casa da amiga na cidade vizinha, o trabalho de parto que engrena assim que se deita, o retorno à mesma cidade de onde acabara de chegar, a internação, decúbito dorsal eterno, o acesso venoso para o soro com ocitócito. As horas a passar, a solidão, a dor, o medo.

E agora todos se apavoravam a seu redor, tensão, algo vai errado. Alguém lhe diz para fazer muita força, que o bebê está em risco, o útero parou de contrair, e lá está a cabeça coroada. Cabeça de quem, meu deus? Menina ou menino? Corre-corre, vozes. Alguém se joga sobre sua barriga e a empurra, com muita força. "Pareciam tenazes, ferro em brasa...". A manobra se mostra eficaz em substituir o trabalho do incompetente útero, da ineficiente mulher. O bebê desliza para fora do corpo açoitado, demora um pouco a chorar, mecônio escorrendo. O médico diz em voz bem alta: "Nasceu o filho da Júlia!". Uai, é menino? Epa, eu não me chamo Júlia!!!

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Daqui a pouco serão 17:40 novamente, só que é quarta-feira. Desde a cena parcamente descrita acima, já se passaram quase - faltam alguns minutos - 49 anos. No entanto, outras não-Júlias passam, agora mesmo, pelo mesmo infortúnio: violência obstétrica institucional, destituição do ser. Detalhes aqui e ali podem ter mudado: o catéter do acesso venoso agora é flexível, a USG pode já ter dectado o sexo do bebê antes do nascimento. Mas na essência, o sentimento é o mesmo. A não-Júlia da história, tem hoje quase 76 anos, e me disse nessa manhã, ao me dar parabéns de mãe pelo meu aniversário, que se lembra de tudinho que aconteceu naquele dia, de bom e de ruim. Detalhes que fizeram de sua história mais uma de início de maternagem em meio a um coro de vozes autoritárias e violentas. Ah, sim, a Júlia. Foi a enfermeira que realizou aquela manobra de Kristeller.

2 comentários:

Carol Valente disse...

Isso que eu chamo de inspiração de aniversário!! :)

Aline disse...

Texto lindo, Dé! Arrepiante!! Beijos!

 

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