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11 de dezembro de 2021

Compartihando conhecimentos

 Há uns dias a musa Deborah Delage participou dessa live, falando sobre atenção ao parto, papel da doula e amamentação.



Quanto vale o seu trabalho? E o seu tempo?

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra há muito tempo que há diferenças enormes de ganhos entre homens e mulheres. É um assunto velho e que parece não chamar mais a atenção, mas no primeiro trimestre deste ano, por exemplo, em média, os homens recebiam quase 30% a mais que as mulheres: enquanto os rendimentos médios delas era de R$ 2.174, o deles correspondia a R$ 2.809. 

A diferença salarial entre homens e mulheres acontece para todos os tipos de trabalho, em todos os níveis hierárquicos. Além disso, de tempos em tempos saem notícias sobre setores em que as mulheres compõem a maior força de trabalho, mas ocupam pouquíssimos cargos de liderança. Do ensino superior, à pesquisa e à saúde, entre tantos outros campos, as notícias simplesmente não mudam.

Algumas vezes já fui procurada por amigas pedindo ajuda para calcular quanto deviam cobrar por um determinado trabalho. Especialistas no que fazem, extremamente capacitadas, sentiam-se perdidas na hora de cobrar pela sua atividade produtiva, pelo seu conhecimento e, porque não dizer, pelo seu tempo.

Não sei o que dizem os gurus de negócios, administração, marketing ou seja lá que campo de conhecimento possa ser ativado para tratar da remuneração de um trabalho. Mas pessoalmente preciso avaliar quanto tempo terei de investir em determinada atividade – sendo ela remunerada ou não – simplesmente porque sobram atividades e faltam horas no dia. Uma necessidade imposta pela vida.

Por mais óbvio que isso seja, essa obviedade não entra na conta da maioria das mulheres que conheço quando avaliam seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Eu costumava me achar uma profissional pouco produtiva, entendia-me como uma procrastinadora crônica, e sentia vergonha por muitas vezes só finalizar as tarefas em cima da hora, ou mesmo com atraso. Meus orçamentos eram baixos demais, e eu raramente tinha uns trocados para comprar algo de que precisasse. Enquanto isso, lia sites e livros sobre formas milagrosas de vencer a procrastinação e sobre como ser mais produtiva... e claro, nada funcionava. Estava fadada ao insucesso, era o que eu pensava, e acostumei-me a pensar dessa maneira a meu respeito.

Não que esse modo de agir e pensar tenha sido totalmente superado (olá, patriarcado!), mas ao refletir sobre o meu tempo disponível, sobre as minhas prioridades e sobre as minhas necessidades, aprendi a dizer "não" para aquilo que, por algum motivo, não cabe no meu dia. Também aprendi a me valorizar mais nas atividades que faço em troca de dinheiro. Entendi que para realizar determinada tarefa, preciso não apenas de conhecimento, mas também (ou principalmente, a depender do caso) de tempo. Tempo para refletir sobre o processo e os campos de conhecimento envolvidos, tempo pra colocar a mão na massa e executar a tarefa.

Periodicamente preciso renovar meus votos de comprometimento comigo mesma, para que não volte a desrespeitar minha existência como mulher, mãe e trabalhadora. Preciso cozinhar, lavar roupa e limpar a casa, porque sem isso minha vida e a do meu filho se tornam muito piores. Também preciso ter tempo para conversar com ele, brincar, ver um filme, ler um livro antes de dormir (e sem que eu mesma adormeça no meio da leitura, vencida pela exaustão). Eu e ele enfrentamos pandemia, com mudança de casa e de cidade, escola nova, ciclo novo, aulas online, aulas presenciais, tudo isso tendo em perspectiva que ele é um adolescente como outro qualquer, ou um pouco mais intenso, pelo fato de ser autista. Motivos a mais para pensar muito bem o que faço com a minha energia produtiva!

Eu mesma me pergunto, quanto vale o meu trabalho? E o meu tempo? A cada clique sou invadida por uma sociedade machista neoliberal, apontando o dedo para mim e dizendo que sou improdutiva e procrastinadora, e que meu tempo pouco vale. A pergunta que devolvo, agora, é: segundo os padrões de quem?

Em termos de dinheiro, não recebo um real de quem quer que seja pelo trabalho mais árduo que realizo há mais de 16 anos, o de ser mãe. Ser mãe tem muitos significados, e um deles, em especial em nossa sociedade, é se matar de trabalhar, receber críticas de todos os lados e lucrar zero reconhecimento. O trabalho de ser mãe ocupa todas as 24 horas do dia, nos sete dias da semana, o ano inteiro, sem folgas nem férias. Mas mesmo sendo árduo e nada reconhecido, ser mãe é o trabalho mais valioso que realizo, com 100% de certeza. Para mim, não há valor maior do que trabalhar para que meu filho cresça feliz e saudável, desenvolvendo-se em sua plenitude. Há muito amor envolvido nesse trabalho, sim, mas nem por isso o trabalho deixa de existir. 

A depender dos privilégios de cada pessoa, a aridez da maternidade pode ser amainada – contudo, é bom lembrar, em geral isso vem com o envolvimento de outras mulheres menos favorecidas e na maioria das vezes negras. Acaba sendo uma espiral de exploração do trabalho das mulheres, da qual as mais pretas e menos escolarizadas têm pouca ou nenhuma chance de escapar. Em geral, mal valorizamos o trabalho que essas pessoas desempenham quando estão sendo remuneradas, e sequer olhamos para tudo aquilo que elas produzem em seus lares, como mães, amigas, cuidadoras... Então, pergunto, quanto vale o trabalho dessas pessoas? E o tempo delas?

Se medimos o valor do trabalho e do tempo pela régua da sociedade patriarcal neoliberal, atividades como amamentar, trocar fralda e colocar pra dormir ficam na invisibilidade. Na nossa sociedade, isso não é visto como uma atividade produtiva, nem como trabalho. Meu filho não mama nem usa mais fralda, mas tudo aquilo que faço no exercício da maternidade acaba nesse mesmo lugar do trabalho invisível e não remunerado. Essas atividades não entram na conta da produtividade e aparecem como procrastinação. Assim, não há como eu me enxergar como pessoa bem-sucedida de acordo com essa perspectiva. Por isso mesmo, sempre preciso me lembrar de assumir outro ponto de vista, para que diariamente eu possa ser protagonista do meu trabalho e do meu tempo.

9 de agosto de 2021

Órfãs. Órfãos.

O Airbus A380: de 489 a 615 passageiros
O Boeing 747: 410 passageiros
Um 747 e um A380 lotados se espatifando no chão, sem sobreviventes: aceitaríamos isso todos os dias?

Os maiores aviões de passageiros no mundo são o Airbus A380 e o Boeing 747, que são capazes de transportar de 410 a 615 passageiros de uma só vez. Uma maravilha tecnológica, não é mesmo? E se todos os dias duas dessas aeronaves despencassem do céu, matando todas as pessoas que estavam a bordo? Pois é o que está acontecendo no Brasil, nestes "dias melhores" de pandemia, em que em média 907 pessoas morrem por dia de Covid-19. Um Airbus A380 e um Boeing 747 mergulhando no chão, sem sobreviventes. Por dia. Todos os dias. Nos últimos sete dias. Motivo para comemorar? Sei não. 

E se colocarmos uma lupa no problema, enxergaremos ainda outros. Quem são essas pessoas que morreram por Covid-19? Deixaram família? Parentes? Filhos e filhas, talvez? Netos e netas, já que muitas eram idosas? Será que essas pessoas que se foram de uma hora para outra deixaram para trás dependentes financeiros? Dependentes de cuidados?

Tudo isso ao mesmo tempo.

Em 2019, no Brasil, uma pessoa idosa era responsável por mais da metade de todos os rendimentos recebidos em cerca de 15 milhões de domicílios. Vale mencionar que esse dinheiro recebido pelas pessoas mais velhas provinha de aposentadorias e pensões, e também do trabalho, que essas pessoas continuaram a executar mesmo após os 60 anos.

Neste biênio 2020-2021, a pandemia de Covid-19 tem afetado as pessoas mais velhas de maneira bastante contundente: são elas as que mais morrem por essa doença e, no Brasil, são também as que tiveram maior redução da renda do trabalho. Como se isso por si só já não fosse trágico, é preciso dizer que mais de 13 milhões de lares brasileiros (mais de 18% do total de domicílios) só possuíam como renda o valor recebido por uma pessoa idosa. Um estudo calculou que se todos esses idosos falecessem, aproximadamente 5 milhões de pessoas com menos de 60 anos ficariam na rua da amargura, sem qualquer tipo de renda.

Olhando para o outro extremo da vida, encontramos ainda outras pessoas impactadas pela pandemia, mesmo não sendo elas as principais vítimas fatais da Covid-19. Crianças e adolescentes, afastados das escolas e de todos os outros espaços de socialização, estão também perdendo pais, mães, avôs, avós, seus cuidadores e provedores.

Outro estudo (este internacional) estimou que até abril deste ano, mais de 1 milhão de crianças e jovens de até 18 anos ficaram órfãs de pai, de mãe ou de ambos por causa da Covid-19. Se acrescentarmos a morte de avôs e avós que moravam junto com essas crianças e jovens, 1,5 milhão de pessoas menores de idade perderam seus cuidadores no mundo. No Brasil, com dados mais atualizados, cerca de 263 mil crianças e jovens vivem essa situação: estão sem seus cuidadores e/ou responsáveis financeiros, porque eles faleceram de Covid-19.

Estimativas de crianças e jovens que ficaram órfãs por causa da Covid-19
Estimativas atualizadas podem ser encontradas aqui: https://imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil

É necessário fazer um destaque no caso brasileiro, com relação às mortes maternas relacionadas à Covid-19. Há anos sabemos que a taxa de mortalidade materna no país é alta demais, em especial se considerarmos que somos um país de renda média e que temos um sistema de saúde que provê assistência pré-natal e ao parto para quase todas as mulheres. Mas no contexto da pandemia, nossos resultados são assustadoramente ruins, com muito mais mortes de mulheres em seu ciclo gravídico-puerperal. Segundo o observatório obstétrico de Covid-19, temos até o momento 1.559 mortes maternas ligadas a essa doença, com uma letalidade inaceitavelmente mais alta entre pretas e perdas. 

Dados do observatório obstétrico de Covid-19
As desigualdades por raça/cor saltam aos olhos: entre as mulheres pretas que tiveram Covid-19 na gestação ou no puerpério, 17,2% faleceram


Nossa primeira reação talvez seja de consternação, misturada a um sentimento de fatalidade. Mas é importante dizer que se a pandemia não poderia ter sido evitada diretamente pelos governos dos países individualmente, a magnitude do problema tem relação direta com a resposta elaborada pelos líderes nacionais. Existe um amplo campo de conhecimento chamado saúde pública, que tem teoria, método, prática e pesquisa próprios, para nos dizer como é melhor agir diante de problemas que afetam o bem-estar da população. Por isso mesmo temos países com resultados tão diferentes, considerando número de mortos em relação à população, fechamento ou não das atividades comerciais, culturais e educativas, e por aí vai. Desnecessário dizer que estamos entre os piores países nesses quesitos, mesmo tendo um sistema de saúde universal e gratuito.

Mesmo que queiramos desconsiderar a responsabilidade do atual governo federal nesse problemão chamado pandemia, não podemos nos resignar a olhar, por exemplo, para essas crianças e jovens que perderam seus principais cuidadores para a Covid-19.

De epidemias anteriores, sabe-se que crianças e jovens, mesmo que sobrevivam à crise sanitária, apresentam problemas psicossociais, neurocognitivos, socioeconômicos e biomédicos quando perdem um de seus cuidadores, mesmo quando podem continuar contando com outro cuidador. Por exemplo, um adolescente que perde seu pai, e passa a viver apenas com sua mãe. Para essas pessoas jovens que passaram pelo luto por causa de uma epidemia, os riscos de adoecimento incluem estresse pós-traumático, depressão e tentativas de suicídio. Outros riscos incluem violência doméstica, além de violência física, emocional e sexual. 

Que crianças e jovens de hoje carregarão para sempre a história da Covid-19 em seus corpos, não tenho qualquer dúvida. Mas em que medida sua noção de futuro está comprometida? As estimativas dos estudos trazem os que efetivamente perderam parentes e cuidadores, e quanto aos adultos que sobreviveram, mas que estão sofrendo com sequelas da Covid-19? Não são poucos os que além de não conseguirem mais trabalhar também precisam e precisarão de suporte para as tarefas diárias. Quem será responsável por isso?

Pensando no que os estudos trazem como consequência direta para crianças e jovens que ficaram órfãs, o mesmo campo da saúde pública que ajuda a organizar a estratégia de combate à doença auxilia também na elaboração de medidas de mitigação. Existem intervenções educativas para prevenção de violência, por exemplo, e qualquer tipo de programa visando proteger essas crianças e jovens que ficaram órfãs por causa da pandemia deve também proteger meninas de casamentos precoces, de gestações não desejadas e doenças transmissíveis sexualmente, especialmente o HIV. Por fim, mas não menos importante, as intervenções devem ser no sentido de fortalecer o cuidado sem a institucionalização dessas crianças e jovens. 

Traduzindo isso para o nosso cotidiano brasileiro, significa olhar principalmente para as famílias e regiões vulnerabilizadas e prover muito apoio para que tenham casa, água, comida, roupa, saúde, educação, lazer, ambientes protegidos da violência para que possam crescer e se desenvolver. É da geração futura que estamos falando, não há como negligenciar (ainda mais) a sua existência.

156.800 crianças e jovens ficaram órfãs de pai ou de mãe por causa da Covid-19. 
180.700 sofreram com a morte de um ou ambos os pais ou com a morte do avô, da avó.
263.200 menores de idade tiveram de lidar com a morte de um ou ambos os pais, morte dos avós e/ou morte de outros parentes mais velhos co-residentes.

1.559 óbitos maternos relacionados à Covid-19.

Referências:
https://www.scielo.br/j/csc/a/pgDTDv7hLHfHRtsvbFbsQqg/?format=pdf&lang=pt
https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2821%2901253-8
https://imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil
https://observatorioobstetrico.shinyapps.io/covid_gesta_puerp_br/



 

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